“O dinheiro deve servir e não governar” é
uma afirmação do Papa Francisco contida num documento de 84 páginas – uma
Exortação Apostólica – divulgado esta semana, onde o chefe da Igreja Católica
tece uma forte crítica ao sistema capitalista e à prioridade do dinheiro face
ao ser humano. Aquela expressão pouco clerical é, nem mais nem menos do que uma
chamada de atenção para o domínio que o poder económico-financeiro exerce sobre
o político, num perigoso crescendo, em que “grandes massas da população vêem-se
excluídas e marginalizadas: sem trabalho, sem horizontes, sem saída” já que “se
considera o ser humano em si mesmo, como um bem de consumo, que se pode usar e
deitar fora”. Francisco chega ao ponto de apelidar o sistema capitalista de “tirania
invisível”.
O semanário “Expresso” convidou duas
personalidades – Francisco Louçã e Paulo Teixeira da Cruz – de cariz ideológico
oposto para comentarem o documento papal. Deixamos aqui a opinião sempre
desassombrada do ex-lider do Bloco de Esquerda.
A exortação apostólica
divulgada pelo Papa nos últimos dias provocou um júbilo compreensível nos sectores
mais diferenciados. Quem na Igreja Católica esperava ar fresco sentiu que “A Alegria
do Evangelho” lhe dizia respeito; quem no mundo se indigna com os predadores
reconheceu o que quer dizer que “esta economia mata”.
Todos têm bons motivos para
uma leitura auspiciosa. Para os primeiros, esta exortação tem mesmo duas
novidades mobilizadoras. A mensagem papal crispa-se contra o discurso de resignação,
chegando a contestar o assistencialismo que, afinal, é a base da atividade
social da Igreja: o último comunicado da Conferência Episcopal portuguesa
lembra a sua função na caridade, o que não parece comover o Papa. Mas, além
disso, a exortação aponta à ostentação dos príncipes da religião, clamando por
uma Igreja que saiba estar “suja por andar na rua”, próxima das vítimas da
tirania económica.
Para outros, os que observam
na Igreja mais um dos sinais das preocupações culturais multiplicadas nesta era
de extremismo financeiro, a exortação é igualmente interessante. De facto, o
texto do Papa propõe uma ideia radical: a de que nesta violência social, há “algo
de novo: os excluídos não são explorados, são lixo”. Essa novidade é
perturbadora. Talvez seja ainda mais perturbadora pelo efeito de descoberta que
será duradouro, porque denuncia os pilares de um dos discursos mais difundidos
e mais perversos das últimas décadas, aquele que faz da “exclusão” um universal
vazio, um sujeito dissolvente das fronteiras sociais, uma justificação de resignação
contra a ação coletiva. Ora, lendo-se a vida a partir da “exclusão”, o mundo de
dentro sabe que não protege o mundo de fora mas pode oferecer-lhe caridade. Esta
caridade dos que têm poder ajuda assim as suas próprias vítimas, não deixando
de as tornar em lixo.
Mas se a exclusão cria lixo,
então é porque já ultrapassamos o limiar da humanidade, e esse é o extremismo
que causa toda a desgraça. Que fazer então com esta “tirania económica”, esse
passa a ser o problema: não se pode salvar as gentes sem destruir o monstro. A isso,
o Papa não responde, mas pelo menos exige aos seus que terminem a ostentação e
se sujem na rua.
Há ainda uma outra frase do
Papa que ficará na nossa pequena história, não por ser surpreendente, até pelo
contrário, por ser banal: é o reconhecimento de que a lixificação das pessoas
no mundo gera violência. Se “esta economia mata” não é legítimo e imperativo
opormo-nos à subjugação? O Papa aceita que sim. Evidentemente, num país
distante e à beira-mar plantado, tínhamos tido dias antes a efervescência da cavalaria
prussiana do PSD e CDS contra quem constatara que a vida é insuportável para as
vítimas. “Ó da guarda”, “a Pátria está em perigo”, há agitadores da Aula Magna,
gritaram compenetrados os nossos condes de Abranhos, Nuno Melo, Portas, Aguiar
Branco, nunca imaginando que levariam o responso na missa do doía seguinte.
Nem eles sabiam
que, afinal, a maior fortuna do nosso país duplicou no último ano e que,
portanto, o país vai bem.
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