Por
todo o mundo, as consciências dos democratas de primeira água,
independentemente da sua inclinação ideológica ou partidária, estão a tocar a
rebate perante a iminência de um “canalha em estado puro” ascender ao mais alto
cargo do Estado brasileiro. Proliferam os artigos de opinião no sentido de se
promover uma reflexão global sobre o abismo em que está colocada a democracia
brasileira e, ainda que por enquanto remotamente, o regime democrático em
muitos países não afectados pela peste ideológica da extrema-direita, no seu
condição mais radical.
É
verdade que as populações que vivem em países democráticos se sentem
defraudadas com a forma como foi resolvida a crise de 2008 em que a factura foi
paga apenas pelos mais pobres, com consequências gravíssimas nos salários e no
crescimento das desigualdades sociais. Esta situação tem vindo a gerar um
sentimento de revolta em sectores significativos da população de muitos países,
muito propício ao aparecimento de messias ou salvadores da pátria que falam às
pessoas aquilo que elas querem ouvir e com hipotéticas soluções fáceis captam
com facilidade o voto dos descontentes. Será esta uma das explicações, não a única,
para o que poderá estar a acontecer no Brasil onde Bolsonaro, um canalha no
verdadeiro sentido da palavra poderá vir a ganhar as eleições presidenciais
cuja 2ª volta tem lugar no dia 28 de Outubro.
O texto que aqui deixamos a seguir é
parte de um artigo de opinião que Francisco Assis, não exactamente um
esquerdista, assina no “Público” de hoje.
Carlos Alberto Brilhante Ustra foi um dos maiores, senão mesmo o
maior torcionário, no tempo da ditadura militar que vigorou no Brasil entre
1964 e 1985. Em 2008 foi o primeiro oficial condenado por sequestro e tortura.
Comprovadamente, maltratou física e psicologicamente centenas de pessoas e
chegou ao limite de obrigar crianças a presenciarem o dilacerante espectáculo
do espancamento dos respectivos progenitores. Nunca reconheceu os seus crimes
nem manifestou o mais leve arrependimento pelos seus actos desumanos. Era um
canalha. Morreu em 2015, em Brasília, na cama de um hospital.
Foi precisamente este torcionário miserável que o então deputado
federal Jair Bolsonaro homenageou no momento em que votou a favor do impeachment da Presidente
Dilma Rousseff. Nessa ocasião, Bolsonaro pronunciou uma declaração que o define
integralmente: dedicou o seu voto à “memória do Coronel Carlos Alberto
Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff”. É impossível imaginar, naquele contexto,
uma afirmação mais vil, um comportamento mais indigno, uma atitude mais
asquerosa. Bolsonaro revelou-se ali o que ele verdadeiramente é: um canalha em
estado puro.
O que é um canalha em estado puro? É alguém que contraria
qualquer tipo de critério moral e se coloca num plano comportamental pré ou
anticivilizacional. Quem elogia o torturador de uma jovem mulher absolutamente
indefesa atribui-se a si próprio um estatuto praticamente sub-humano. Bolsonaro
é dessa estirpe, desse rol de gente que leva à interrogação sobre o que
subsiste de humano no homem que literalmente se desumaniza. Theodore Adorno
levou essa questão até ao limite do pensável, quando formulou a sua célebre
afirmação: “escrever um poema depois de Auschwitz é um acto bárbaro e isso corrói
até mesmo o conhecimento de porque se tornou impossível escrever poemas”. E,
contudo, a poesia sobreviveu. O Homem resiste ao que de desumanizador ele
inscreve na história. Isso não é razão para renunciar à denúncia da barbárie.
A barbárie tem muitos rostos: é estúpida, boçal, intolerante,
sectária, fanática, simplista, racista, xenófoba, homofóbica, sexista,
classista, irremediavelmente preconceituosa, inevitavelmente primária. Jair Bolsonaro é um dos rostos perfeitos dessa barbárie
em versão actual. Tudo nele aponta para
a pequenez: é um ser intelectualmente medíocre, eticamente execrável,
politicamente vulgar. Nele observa-se uma prodigiosa ausência de qualquer tipo
de grandeza e uma assustadora presença de tudo quanto invalida um cidadão para
o desempenho da mais humilde função pública. Por isso mesmo ele é
extraordinariamente perigoso: é a expressão quase exemplar do homem sem qualidades
subitamente erigido a um papel de liderança.
Bolsonaro não é Hitler,
não é Mussolini, não é sequer Franco. Em bom rigor, se quisermos ater-nos a um
debate intelectual de natureza escolástica, ele não é bem a representação do
fascismo. Há nele, contudo, na dimensão medíocre que a sua pobre personalidade
proporciona, tudo aquilo de que a tradição fascista historicamente se
alimentou. O anti-iluminismo, a exaltação sumária da unicidade nacional, a
apologia da violência, o culto irracional do chefe. Bolsonaro é pouco mais do
que um analfabeto ideológico com todos os perigos que isso mesmo encerra. Ele e
a sua prole de jovens tontos significam hoje o maior perigo com que se depara o
mundo ocidental.
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