Vale
verdadeiramente a pena ler até ao fim o seguinte artigo de opinião assinado por
João Ferreira Dias, investigador do Centro de Estudos Internacionais do ISCTE, que
transcrevemos do “Público” de hoje e cujo tema de fundo tem a ver com as
eleições presidenciais brasileiras deste mês.
Se
os eleitores do maior país de língua portuguesa derem a vitória a Jair Bolsonaro,
um candidato assumidamente fascista (sem aspas), então, o Brasil entra deveras
no inferno pois aquilo que ele pretende levar a cabo vai traduzir-se numa
brutal onda de repressão e num imenso banho de sangue. Caso o voto dos
brasileiros não pare a fúria sanguinária de Bolsonaro, em última instância, talvez
tenhamos de nos preparar deste lado do Atlântico a uma vaga de refugiados. Por outro
lado, também não deixa de ser assustador para os portugueses ver mais um estado
a ser governado pela extrema-direita uma vez que esta ideologia desrespeitadora
dos mais elementares direitos humanos já se instalou na governação de vários
países europeus.
Existe um consenso teórico entre quem estuda a
nostalgia como produto psicológico e sociológico o qual postula que para que
esta se expresse é necessária a ação degradadora do tempo, uma ação capaz de
produzir esquecimento. Sem esquecimento não existe nostalgia. É por isso que
Mascarenhas Barreto escreveu que “chega gente a ter saudades das horas más que
passou”. Ora, por essa razão, a nostalgia é uma aspiração, não raras vezes, por
um lugar que não existe ou por uma imagem idílica de um passado cristalizado na
lembrança, uma lembrança que é individualmente tecida, mas socialmente
instituída, porque a nostalgia necessita de correspondência com os demais
sujeitos.
Mas o que tem isto a ver com as eleições presidenciais
brasileiras deste mês? Tudo. Porque afastado judicial e politicamente Lula da
Silva, Jair Bolsonaro aparece como o mais provável próximo Presidente da
República brasileira e, provavelmente, o último desta era democrática, uma vez
que é seu sonho instaurar um governo de feição ditatorial-militar. Ora, o
programa ideológico de Bolsonaro assenta em premissas nostálgicas, porque
idealiza todo o passado colonial brasileiro e responsabiliza os negros pela escravatura
– chegou a afirmar que os comerciantes de escravos nem colocaram os pés em
África, que foram os negros que se ofereceram para serem escravos –, retirando
a mácula da ação portuguesa e mais tarde da coroa brasileira. Portanto, no
discurso de Bolsonaro, o mito do bom selvagem de Rousseau é transformado no
mito do bom colonizador. Não é por acaso que o seu lema é, precisamente, o
mesmo de Salazar, “Deus, Pátria, Família”.
O que Bolsonaro promete aos seus eleitores é a
restauração da "ordem" e do "progresso", que são os lemas
da bandeira brasileira, que o candidato da extrema-direita considera ter sido
cumprido – parcialmente, pois já afirmou que o número de mortes não foi
suficiente – durante o período da Ditadura Militar. Essa promessa de forte feição
religiosa, próxima à instauração do reino de Deus na terra – não é por acaso
que a larga maioria dos evangélicos apoiam Bolsonaro e não os candidatos
declaradamente evangélicos (recorde-se que Bolsonaro é católico) –, é
maniqueísta, opondo o bem, representado nas elites históricas
brasileiras, ao mal, representado nos pobres. Jair Bolsonaro não
leva em consideração os fatores históricos ligados à escravatura e ao
pós-abolição para entender a formação de uma classe pobre e negra, e das
favelas, não considera a forma como os privilégios sociais foram sendo
encerrados nas mãos das mesmas famílias e zonas urbanas, i.e., dos brancos,
católicos e de classe média/alta. No seu discurso, crime, pobreza, negritude e
preguiça estão ligados de forma determinante. Pior, eles surgem como uma opção
e jamais como produto de uma sociedade esventrada pelo fosso entre
brancos-ricos e negros-pobres.
Num país cansado de corrupção, onde os avanços sociais
do PT foram secundarizados pelos escândalos, onde a imprensa alinhada com os
golpistas que arquitetaram a destituição de Dilma Rousseff filtra a informação
e a forma como esta chega, onde as classes sociais detentoras do capital
financeiro permanecem arreigadas a uma ideologia de um país esquadrinhado entre
a Casa Grande e a Senzala, Bolsonaro e os seus aliados têm sabido cavalgar a
onda. Eles sabem que o brasileiro de classe média se revê nesse discurso de
ódio racializado. O facto de Bolsonaro não ter outro discurso que não o ódio,
de não apresentar qualquer programa de governo, não é relevante. Os factos não
são relevantes. O importante, neste contexto, é o clima de histeria em torno de
um candidato que promete ódio. Que prega sobre a defesa dos valores da família
tradicional, mas que vai no terceiro casamento, e que tem um filho ilegítimo,
ou que ameaçou de morte uma das esposas. Ou, por exemplo, que defende o combate
à corrupção, mas que esteve envolvido num esquema de subornos. Em nada adianta
mencionar que Bolsonaro se orgulha de gastar o erário público com viagens e uma
vida de luxo. Não adianta mencionar que numa carreira política de quase 30
anos, as únicas propostas de lei que votou a favor foram as que beneficiavam os
deputados, como aumentos de salários e verbas para despesas. Para a saúde ou
educação o seu voto foi sempre negativo.
Neste cenário, a tentativa de homicídio de que foi
vítima serviu para reforçar o seu lugar como salvador, como messias. O
messianismo expresso em Bolsonaro, é fortemente apoiado pelo eleitorado
conservador-religioso, ao apresentar linhas ideológicas sedutoras a quem
imagina um Brasil muito distante do país miscigenado, multicultural e
multiétnico, para revitalizar a utopia do país dos salões nobres, das fazendas,
que levou ao incentivo massivo de imigração europeia, no intento máximo de "branqueamento
social". É por isso que o discurso do armamento popular, do “bandido bom é
bandido morto”, do genocídio de jovens negros, de esterilização dos pobres, de
combate à homossexualidade, à diversidade religiosa e de subalternização do
papel da mulher, se tornou tão apelativo numa população que vive com medo de
sair às ruas. A promessa de matar todos os pobres, criminosos e potenciais
criminosos, promessa tão perigosa quanto devastadora, tem seduzido milhões de
pessoas. Curiosamente, no segundo país do mundo onde a população vive mais
alheada da realidade. Não é estranhar que em favor da ideologia de
extrema-direita de Bolsonaro, se tenha propagado no Brasil o mito de que o
nazismo alemão teria sido de extrema-esquerda, colando-o ao Partido dos Trabalhadores
(PT).
Compreende-se
que as repercussões da eleição de Bolsonaro no mapa social brasileiro serão
tremendas. Como ele fez questão de anunciar, os índios serão expropriados das
suas terras. O massacre de jovens negros agudizar-se-á. A intolerância religiosa,
que já possui forte feição de guerra santa, terá maior cobertura política. A
cultura de estupro e impunidade que rasga o Brasil será cada vez maior. O país
do ocidente que mais membros da comunidade LGBT mata terá um programa
ideológico que o fundamenta.
Como
português, preocupa-me que num país ocidental e com uma população teoricamente
informada como a nossa, existam tantos portugueses que simpatizam com o
discurso de Bolsonaro, um discurso que, repita-se, é misógino, racista,
anti-LGBT, fascista, apoiante da ditadura militar, anti-liberdade religiosa,
que propõe como solução para a pobreza a castração dos pobres.
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