Deste
lado do Atlântico os sinais de alarme continuam a soar cada vez mais alto entre
as forças democráticas, qualquer que seja a sua cor, relativamente ao dia
seguinte à eleição presidencial no Brasil. Todos receiam um monumental retrocesso
democrático no maior país da América Latina, no sentido mais amplo do termo,
tendo em conta a possibilidade real de sair vencedor o candidato da
extrema-direita.
Felizmente
o campo democrático em Portugal tem trazido para a comunicação social um amplo
conjunto de artigos de opinião, todos no sentido de um amplo apoio a Fernando
Haddad, a única personalidade que actualmente congrega todas as esperanças de
se continuar a ver o Brasil no campo democrático. Os textos vão todos neste
sentido ainda que abordem facetas diferentes – o que é bom – do que se vai
apreendendo ao longo do processo eleitoral brasileiro.
O
artigo de opinião seguinte (*) que transcrevemos do “Público” de hoje tem a ver
com o que vai sendo possível perceber-se das propostas do candidato fascista
apesar da sua fuga aos debates televisivos.
A eleição presidencial em curso no Brasil é um momento
de singular importância para o maior país da América Latina, mas também para o
futuro da democracia. O clima de intimidação, de violência e de perseguição
promovido pela candidatura de extrema-direita e seus apoiantes, após a vitória
na primeira volta, tem sido alimentado por um fluxo continuado de fake news,
de desinformação e ataques tendo como alvo principal o candidato das forças
democráticas, Fernando Haddad. O Tribunal Superior Eleitoral, apesar de ter declarado
a intenção de combater as fake news, acabou por admitir não ter
capacidade para o fazer. Continuam assim a proliferar, com impunidade,
desinformação, insultos e discursos de ódio dirigidos a Haddad, aos seus
aliados, apoiantes e eleitores, e aos habituais alvos dos ataques da
extrema-direita, como mulheres, pessoas LGBTI, negros, indígenas ou moradores
de periferias urbanas, entre outros.
Esta estratégia é articulada com uma outra, que cria
uma situação insólita nos processos eleitorais em regimes democráticos: a
sistemática fuga aos debates televisivos previstos com Fernando Haddad,
impedindo assim que sejam discutidos os projetos em confronto na eleição, e
explicitadas e confrontadas de maneira clara as propostas políticas dos
candidatos. Essas propostas não deixam de aparecer, contudo, nas entrevistas
individuais e nos diferentes atos de campanha dos candidatos, ainda que, no
caso de Bolsonaro, de maneira fragmentada e por vezes com declarações contraditórias
proferidas por figuras ligadas à sua campanha. Vale a pena olhar mais de perto
para algumas dessas declarações.
Na
educação, é prometida a generalização do ensino à distância, com a intenção de
combater a alegada doutrinação realizada nas salas de aula por professores de
esquerda; a remoção de “conteúdos impróprios” dos programas e das salas de
aula, ou, por outras palavras, acabar com a liberdade de aprender e de ensinar;
“repor a verdade sobre o movimento de 1964”, novo pseudónimo da ditadura militar;
introduzir o ensino do criacionismo em paralelo com o da evolução; desvalorizar
a importância das condições de remuneração dos professores e o seu estatuto
profissional; impor aos estudantes medidas disciplinares destinadas,
alegadamente, a punir o desrespeito aos professores, através de “repressão
democrática”; suprimir as medidas de democratização do acesso ao ensino
superior.
No
domínio do ambiente, as medidas incluem a fusão dos ministérios da Agricultura
e do Ambiente e a sua entrega aos interesses ruralistas; a eliminação de
medidas existentes de regulação ambiental, o esvaziamento dos poderes dos
organismos de vigilância e da alegada “indústria das multas” que estes
promoveriam; “acabar com todos os ativismos” e expulsar as ONG ambientais e de
defesa dos direitos humanos, alegados agentes ou cúmplices de uma conspiração
internacional para a apropriação da Amazónia... Estes exemplos permitem começar
a entender a extensão do programa de retrocesso — de regresso ao Brasil de há
40 ou 50 anos, como afirma Bolsonaro, ou seja, ao Brasil da ditadura — que se
prefigura no horizonte... Em caso de vitória, Bolsonaro prepara-se para um
ataque sem precedentes às lutas de povos indígenas e populações tradicionais e
de ativistas ambientais e de direitos humanos que têm resistido à
desflorestação da Amazónia e de outros espaços. Curiosamente, Bolsonaro
reconheceu que o aquecimento global é um problema real, mas afirmou que a sua
causa seria o excesso de população. Das suas muitas declarações, não é difícil
concluir que essa população em excesso inclui todas as pessoas, grupos e
comunidades “descartáveis”, como indígenas, quilombolas e pobres, cujo destino
seria o de optar entre a extinção ou a integração, forçadas pelo fim das
demarcações de terras, pela violência legalizada dos ruralistas, e mesmo por
medidas eugenistas destinadas a evitar a proliferação dos “indesejáveis”.
Este
aspeto do projeto de retrocesso merece especial atenção, perante o cenário,
recentemente reconfirmado pela ONU, de agravamento acelerado das consequências
das alterações climáticas e do aquecimento global. O relatório da ONU
recentemente publicado, apoiado no trabalho do IPCC, lança um alerta apontando
para um caminho inverso daquele que, por pressão do “mercado” e dos
“investidores”, têm seguido alguns países, formalmente comprometidos com a
redução de emissões de CO2. É o próprio CEO da Shell, uma das principais
empresas petrolíferas do mundo, que veio a público afirmar que, para travar a
subida da temperatura e a manter em valores compatíveis com uma resposta viável
ao agravamento do aquecimento global, seria necessário um grande projeto de
florestação que criasse outro Brasil, e não desflorestar o que já existe. A
ameaça que paira sobre a democracia no Brasil traz assim no seu bojo o agravamento
de um dos maiores problemas que neste momento afetam o planeta, com o seu
cortejo de efeitos que atingirão, sobretudo, as populações mais
vulnerabilizadas pela pobreza, pela falta de água, pela erosão dos solos, pela
exposição a desastres, migrações forçadas, perseguições e guerras.
Há
apenas dois lados na eleição brasileira: o lado da liquidação da democracia, da
afirmação da violência, do medo, do ódio e da aposta numa espiral de desastre;
e o lado da defesa da democracia, dos direitos, do respeito pela vida e pela
terra. São também estas as opções que hoje se apresentam a quem, em qualquer
parte do mundo, se coloca do lado da democracia, dos direitos humanos, da
justiça social, cognitiva e ambiental.
(*) João Arriscado
Nunes, Prof. da FEUC e investigador do CES
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