domingo, 2 de setembro de 2018

EUA: UM SISTEMA ELEITORAL PARA ENGANAR A DEMOCRACIA


Quando ocorrem eleições em África, os resultados que nos chegam através da comunicação social são geralmente apresentados de uma forma que, quase automaticamente, somos levados a acreditar que há por ali marosca de grossa.
A palavra “fraude” está muitas vezes associada a actos eleitorais que têm lugar em países africanos, o que nos induz de imediato a duvidar dos seus resultados. Em muitos casos, este raciocínio não estará muito longe da realidade. Mas o que não nos passa pela cabeça é que sujeiras do mesmo tipo embora levadas a cabo de forma mais sofisticada possam acontecer nos Estados Unidos da América, a pátria da democracia, e  que tudo seja considerado normal. É como se estivéssemos num regime próximo do de partido único onde, por exemplo, o “desenho dos círculos eleitorais é permanentemente refeito” para garantir a vitória sempre para os mesmos…
Esta e outras curiosidades são referidas no interessante artigo de opinião que Francisco Louçã assina no Expresso Economia deste sábado, que apresentamos a seguir, e cuja leitura recomendamos vivamente.
Não se sabe, o futuro dirá se o maior risco para Trump vem do pântano dos escândalos financeiros, como a condenação no mesmo dia de dois dos seus antigos colaboradores, o diretor de campanha Paul Manafort, que acumulou fortuna com as receitas de lobbying para governos estrangeiros, e do seu advogado e fixer, Michael Cohen, ou da série de denúncias, livros chocantes e demissões entre os seus atuais colaboradores na Casa Branca. Dois deles, Scott Pruitt e Tom Price, estão a ser processados por manigâncias diversas. Tudo gira sempre à volta de dinheiros escondidos, despesas injustificadas e abusos de poder.
O odor a corrupção que se instalou com o homem que dizia que ia limpar Washington não surpreende. O seu efeito político pode ter consequências: se, como calcula “The Economist”, os democratas tiverem 75% de probabilidades de ganhar as eleições intercalares, podem aproximar-se da maioria na Câmara dos Representantes, passando então a controlar as comissões parlamentares que abrem a porta às investigações que a maioria republicana tem bloqueado. Vai daí uma grande distância até à impugnação de Trump, que exigiria dois terços dos votos no Senado, o que não parece plausível.
No entanto, todas estas dificuldades são acentuadas por um sistema eleitoral que não está doente, é doente. Os promotores de propostas de novas engenharias eleitorais em Portugal fariam bem em estudar este sistema construído para enganar a democracia.
Um sistema para os republicanos
As eleições intercalares, que renovam parte da Câmara dos Representantes e do Senado, são particularmente difíceis para os democratas em estados mais rurais e conservadores como o Missouri, Montana, Dakota do Norte e Virgínia Ocidental, ou também Indiana. Essa circunstância tem acentuado a divisão interna do partido democrata, com democratas mais à direita a conseguirem vitórias nas primárias desses estados, enquanto na Califórnia e em Nova Iorque candidatos apoiados por Bernie Sanders têm surpreendentemente conseguido a nomeação pelo seu partido.
Acresce que o sistema eleitoral está desenhado para maiorias conservadoras e sempre tem funcionado assim. Entre 2012-2016, os republicanos só obtiveram 46% dos votos no senado, mas mantiveram sempre a maioria, o que se explica pela representação do território (nas áreas rurais, há 70% de republicanos nas assembleias legislativas estaduais, nas urbanas os democratas são 63% e os republicanos 37%) e pelo sistema bipartidário, enraizado e reproduzido pelos círculos uninominais.
O sistema de eleição de representantes dos estados para escolher o Presidente tem ainda tido um conhecido efeito perverso: se todos os Presidentes eleitos no século XX tiveram a maioria dos votos populares, dois em cinco dos eleitos no século XXI (Bush e Trump) foram eleitos perdendo entre o povo. Em 2016, Trump teve menos três milhões de votos do que a sua rival, que obteve uma vantagem superior à de vencedores da corrida presidencial, como Kennedy (1960), Nixon (1968) e Carter (1976).
Afastar os eleitores
Ou seja, os republicanos, dominantes na política norte-americana, perderam as eleições presidenciais e as senatoriais, mas ganharam a Casa Branca e a maioria dos lugares. A reprodução permanente deste sistema viciado fica difícil, como é bom de ver.
Há duas tecnologias que têm sido desenvolvidas ao longo dos tempos para assegurar a sobrevivência desta fraude. A primeira é o desenho dos círculos eleitorais, que é permanentemente refeito. Nem sempre a manobra mais descarada é aceite e, na semana passada e pela segunda vez, o Supremo Tribunal anulou por inconstitucionalidade a redefinição do mapa eleitoral da Carolina do Norte, alegando que beneficiava escandalosamente os seus autores, republicanos. Esta forma de intervenção, chamada “gerrymandering” (o nome foi dado por um cartoon de 1812 a propósito da eleição em Massachusetts, onde o governador, Elbridge Gerry, desenhou um círculo eleitoral que, no mapa, parecia uma salamandra, para garantir o resultado que lhe convinha), generalizou-se ao longo dos anos. E lentamente tem vindo a garantir a vantagem dos republicanos.
O resultado é notável: em 2016, os democratas que ganham precisam em média de 67,4%, ao passo que aos republicanos bastaram menos 5%. Deste modo, nas três últimas eleições para a Câmara de Representantes, os republicanos conseguem uma representação de mais 4 a 5% acima do seu resultado popular, o que explica que o outro partido tenha de alcançar uma vantagem muito expressiva para poder aspirar a ganhar as eleições. Segundo “The Economist”, no total os democratas têm de ter mais 7% de votos do que os republicanos, dada a geografia do sistema eleitoral; se ganharam por 6% de vantagem, podem ficar em minoria.
A segunda tecnologia para manter este sistema eleitoral viciado é a alteração de regras de voto de modo a afastar das urnas os eleitorados que sejam mais críticos dos republicanos. O pretexto, que Trump repetiu à exaustão, é que os hispânicos e os negros falsificariam as eleições. Foi mesmo formada uma comissão parlamentar para investigar o assunto, chefiada por um aliado da Casa Branca, que depois decidiu desistir sem sequer ter elaborado um relatório. De facto, desde 1982 foram investigados 1200 casos de fraude eleitoral, mas a grande maioria refere-se a atividades dos funcionários e não a atitudes de eleitores.
Isso não impede que no estado do Arkansas tenha sido anulada a inscrição eleitoral de pessoas condenadas judicialmente, mas descobriu-se que a lista dos punidos incluía pessoas que estiveram em contacto com os tribunais, por exemplo por se terem divorciado. Em Nova Iorque, foram anuladas centenas de milhares de inscrições, sobretudo de hispânicos, na presunção de que teriam mudado de residência. Os partidários de Trump empenham-se nesta purga eleitoral: se menos pessoas votarem entre estas comunidades, as hipóteses do Presidente crescem.
Assim, este sistema está feito para distorcer e para falsificar a vontade dos eleitores. Será alguma coisa, mas chamar-lhe democracia é um exagero.

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