Quando
ocorrem eleições em África, os resultados que nos chegam através da comunicação
social são geralmente apresentados de uma forma que, quase automaticamente,
somos levados a acreditar que há por ali marosca de grossa.
A
palavra “fraude” está muitas vezes associada a actos eleitorais que têm lugar
em países africanos, o que nos induz de imediato a duvidar dos seus resultados.
Em muitos casos, este raciocínio não estará muito longe da realidade. Mas o que
não nos passa pela cabeça é que sujeiras do mesmo tipo embora levadas a cabo de
forma mais sofisticada possam acontecer nos Estados Unidos da América, a pátria
da democracia, e que tudo seja
considerado normal. É como se estivéssemos num regime próximo do de partido
único onde, por exemplo, o “desenho dos círculos eleitorais é permanentemente
refeito” para garantir a vitória sempre para os mesmos…
Esta
e outras curiosidades são referidas no interessante artigo de opinião que Francisco
Louçã assina no Expresso Economia deste sábado, que apresentamos a seguir, e
cuja leitura recomendamos vivamente.
Não
se sabe, o futuro dirá se o maior risco para Trump vem do pântano dos
escândalos financeiros, como a condenação no mesmo dia de dois dos seus antigos
colaboradores, o diretor de campanha Paul Manafort, que acumulou fortuna com as
receitas de lobbying
para governos estrangeiros, e do seu advogado e fixer, Michael Cohen, ou da
série de denúncias, livros chocantes e demissões entre os seus atuais
colaboradores na Casa Branca. Dois deles, Scott Pruitt e Tom Price, estão a ser
processados por manigâncias diversas. Tudo gira sempre à volta de dinheiros
escondidos, despesas injustificadas e abusos de poder.
O
odor a corrupção que se instalou com o homem que dizia que ia limpar Washington
não surpreende. O seu efeito político pode ter consequências: se, como calcula
“The Economist”, os democratas tiverem 75% de probabilidades de ganhar as
eleições intercalares, podem aproximar-se da maioria na Câmara dos
Representantes, passando então a controlar as comissões parlamentares que abrem
a porta às investigações que a maioria republicana tem bloqueado. Vai daí uma
grande distância até à impugnação de Trump, que exigiria dois terços dos votos
no Senado, o que não parece plausível.
No
entanto, todas estas dificuldades são acentuadas por um sistema eleitoral que
não está doente, é doente. Os promotores de propostas de novas engenharias
eleitorais em Portugal fariam bem em estudar este sistema construído para
enganar a democracia.
Um sistema para os
republicanos
As
eleições intercalares, que renovam parte da Câmara dos Representantes e do
Senado, são particularmente difíceis para os democratas em estados mais rurais
e conservadores como o Missouri, Montana, Dakota do Norte e Virgínia Ocidental,
ou também Indiana. Essa circunstância tem acentuado a divisão interna do
partido democrata, com democratas mais à direita a conseguirem vitórias nas
primárias desses estados, enquanto na Califórnia e em Nova Iorque candidatos
apoiados por Bernie Sanders têm surpreendentemente conseguido a nomeação pelo
seu partido.
Acresce
que o sistema eleitoral está desenhado para maiorias conservadoras e sempre tem
funcionado assim. Entre 2012-2016, os republicanos só obtiveram 46% dos votos
no senado, mas mantiveram sempre a maioria, o que se explica pela representação
do território (nas áreas rurais, há 70% de republicanos nas assembleias
legislativas estaduais, nas urbanas os democratas são 63% e os republicanos
37%) e pelo sistema bipartidário, enraizado e reproduzido pelos círculos
uninominais.
O
sistema de eleição de representantes dos estados para escolher o Presidente tem
ainda tido um conhecido efeito perverso: se todos os Presidentes eleitos no
século XX tiveram a maioria dos votos populares, dois em cinco dos eleitos no
século XXI (Bush e Trump) foram eleitos perdendo entre o povo. Em 2016, Trump
teve menos três milhões de votos do que a sua rival, que obteve uma vantagem
superior à de vencedores da corrida presidencial, como Kennedy (1960), Nixon
(1968) e Carter (1976).
Afastar os eleitores
Ou
seja, os republicanos, dominantes na política norte-americana, perderam as
eleições presidenciais e as senatoriais, mas ganharam a Casa Branca e a maioria
dos lugares. A reprodução permanente deste sistema viciado fica difícil, como é
bom de ver.
Há
duas tecnologias que têm sido desenvolvidas ao longo dos tempos para assegurar
a sobrevivência desta fraude. A primeira é o desenho dos círculos eleitorais,
que é permanentemente refeito. Nem sempre a manobra mais descarada é aceite e,
na semana passada e pela segunda vez, o Supremo Tribunal anulou por
inconstitucionalidade a redefinição do mapa eleitoral da Carolina do Norte,
alegando que beneficiava escandalosamente os seus autores, republicanos. Esta
forma de intervenção, chamada “gerrymandering” (o nome foi dado por um cartoon
de 1812 a propósito da eleição em Massachusetts, onde o governador, Elbridge
Gerry, desenhou um círculo eleitoral que, no mapa, parecia uma salamandra, para
garantir o resultado que lhe convinha), generalizou-se ao longo dos anos. E
lentamente tem vindo a garantir a vantagem dos republicanos.
O
resultado é notável: em 2016, os democratas que ganham precisam em média de
67,4%, ao passo que aos republicanos bastaram menos 5%. Deste modo, nas três
últimas eleições para a Câmara de Representantes, os republicanos conseguem uma
representação de mais 4 a 5% acima do seu resultado popular, o que explica que
o outro partido tenha de alcançar uma vantagem muito expressiva para poder
aspirar a ganhar as eleições. Segundo “The Economist”, no total os democratas
têm de ter mais 7% de votos do que os republicanos, dada a geografia do sistema
eleitoral; se ganharam por 6% de vantagem, podem ficar em minoria.
A
segunda tecnologia para manter este sistema eleitoral viciado é a alteração de
regras de voto de modo a afastar das urnas os eleitorados que sejam mais
críticos dos republicanos. O pretexto, que Trump repetiu à exaustão, é que os
hispânicos e os negros falsificariam as eleições. Foi mesmo formada uma
comissão parlamentar para investigar o assunto, chefiada por um aliado da Casa
Branca, que depois decidiu desistir sem sequer ter elaborado um relatório. De
facto, desde 1982 foram investigados 1200 casos de fraude eleitoral, mas a
grande maioria refere-se a atividades dos funcionários e não a atitudes de
eleitores.
Isso
não impede que no estado do Arkansas tenha sido anulada a inscrição eleitoral
de pessoas condenadas judicialmente, mas descobriu-se que a lista dos punidos
incluía pessoas que estiveram em contacto com os tribunais, por exemplo por se
terem divorciado. Em Nova Iorque, foram anuladas centenas de milhares de
inscrições, sobretudo de hispânicos, na presunção de que teriam mudado de residência.
Os partidários de Trump empenham-se nesta purga eleitoral: se menos pessoas
votarem entre estas comunidades, as hipóteses do Presidente crescem.
Assim,
este sistema está feito para distorcer e para falsificar a vontade dos
eleitores. Será alguma coisa, mas chamar-lhe democracia é um exagero.
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