Provavelmente,
os taxistas constituem um dos grupos profissionais mais antipáticos para a
população portuguesa, em particular para a parte mais progressista de todos
nós, com sobejas provas da sua generalizada reaccionarice. Por isso mesmo, é
bem crível que uma parte significativa dos portugueses não se identifique com a
luta que estão a levar a cabo ainda que ela “corresponda a uma luta que nos
envolve a todos, mesmo que a maioria não o entenda”, como afirma Daniel
Oliveira (DO) na sua crónica de hoje no Expresso Diário. O mais espectável é
que os taxistas jamais se envolvessem num protesto solidário com uma
reivindicação que abrangesse outros grupos profissionais para além deles
próprios. No entanto, a sua luta tem um alcance que os próprios “actores”
desconhecem.
Aqui fica, pois, uma parte importante da crónica de
DO sobre um tema que muitos portugueses desconhecerão o seu alcance. (Os sublinhados são da nossa responsabilidade)
À hora que escrevo este texto as
manifestações dos taxistas ainda não acabaram. Não sei se alguma coisa acontecerá
que volte a ensombrar a razão que têm. Se tiver acontecido, é mesmo de uma
sombra que se trata. O que interessa, o que me interessa, é que a manifestação
de hoje, mesmo que os seus atores não o saibam, corresponde a uma luta que nos
envolve a todos, mesmo que a maioria não o entenda.
Claro que é excelente usar o telemóvel
para ter tudo imediatamente. Mas como já são várias as aplicações disponíveis
para os táxis com todas as valências que a Uber oferece, não é o avanço
tecnológico que está em causa. Estão em causa três coisas: a utilização
destas plataformas para destruir qualquer atividade económica regulada, a
deslocalização duma parte substancial das receitas provenientes de atividades
totalmente locais e a desregulação laboral, tornando todos os trabalhadores em
“empreendedores” à jorna, sem qualquer direito e com rendimentos miseráveis.
Os transportes públicos, sejam
coletivos ou individuais, são das atividades mais reguladas em qualquer
sociedade desenvolvida. É normal a atividade de transportes urbano de
passageiros ser entregue ao empreendedorismo de cada um em cidades do chamado
“terceiro mundo”. É assim em Maputo, com os “capas”, em Luanda com os
“candongueiros”, ou em Bombaim, com os tuk-tuk. Em cidades do chamado
“primeiro mundo” há forte regulação para garantir a racionalidade de todo o
sistema de mobilidade. Uma parte importante dos transportes públicos
costumam estar a cargo do Estado e os privados estão sujeitos a regulação pouco
habitual noutras atividades. Aceitar que há empresas que podem concorrer com
outras, oferecendo exatamente o mesmo serviço (quem diz que a Uber faz aluguer
de curta duração com motorista está só a brincar com as palavras), respondendo
a regras diferentes é aceitar a concorrência desleal. Só há ultraliberais a
defendê-lo porque veem aqui a oportunidade das empresas menos reguladas matarem
as mais reguladas, impondo a desregulação económica como norma.
A desregulação tem sido filha da
globalização. E isso resulta de uma contradição que ainda não conseguimos
resolver: quem regula são os Estados nacionais numa economia global. O que quer
dizer que não temos regulador eficaz, com poder político e capacidade de
coação, para regulados globais. Só que isso não acontece com o transporte
urbano. Porque opera localmente e não é deslocalizável. É uma atividade facilmente
regulável. Ao contrário do que acontece com outras atividades, a riqueza que
produz fica no país. Uma das características de fenómenos com a Uber é
conseguirem retirar dos mercados locais boa parte dos rendimentos conseguidos
por atividades não deslocalizáveis. É um processo de concentração mundial
de riqueza que, neste caso, não resulta de qualquer inevitabilidade. Ele só é
possível com a cumplicidade dos Estados. Se não quiserem carros da Uber nas
ruas eles desaparecem.
Por
fim, o tipo de relação contratual que a Uber define com os motoristas,
transformando-os não em trabalhadores, não em colaboradores, nem sequer em
fornecedores de serviços, mas em seus clientes (chamam-lhes “parceiros”, mas é
uma parceria em que só um dos lados decide) corresponde a uma desvinculação
entre as empresas e quem realmente faz o trabalho. Este tipo de relação laboral
impede qualquer tipo de regulação ou defesa de quem trabalha.
Um estudo do “The Australia Institute”
comparou os ganhos de motoristas do Uber com o salário mínimo previsto pela
legislação do país e concluiu que se os preços cobrados subissem o suficiente
para pagar o salário mínimo quase toda a vantagem de preço do UberX relativa a
táxis tradicionais desapareceria. Um dos negócios da Uber é transformar os
motoristas em “parceiros”, pô-los a pagar todas as despesas e concorrer com
outras empresas sem assumir qualquer investimento para além da plataforma
digital. Se esta forma de fazer negócios se impuser, mesmo em atividades
locais, perderemos todas as conquistas sociais que nos permitem ter salário,
férias, fins de semana, família, descanso, lazer, vida. A Uber pode ter um ar
moderníssimo mas é, no tipo de relações laborais que impõe, mais antiga que do
carro ou o telefone.
A adesão de muitos cidadãos, sobretudo
jovens, à Uber é um daqueles clássicos em que o escravo contribui para a sua
própria escravidão.
De cada vez que usa a Uber está a criar as condições para que o seu futuro seja
miserável, precário e totalmente desprotegido. Não condeno porque, como já
escrevi várias vezes, não moralizo o comportamento dos atores económicos. Quem
tem de prevenir os efeitos que este tipo de atividade têm na sociedade, na
economia, na cidade e nas relações laborais são os que elegemos para regular a
vida em comunidade: os políticos.
Vários países europeus estão a tomar
medidas para limitar a concorrência desleal da Uber, Cabify, Chauffeur Privé e
outras empresas do género, limitando o seu espaço de manobra, tentando manter
os proveitos do negócio do transporte urbano na economia local e protegendo os
motoristas que ficam com as migalhas do lucro multimilionário destas
multinacionais. É por isso paradoxal que seja um dos poucos Governos de
esquerda da União Europeia a dar a primeira grande vitória à Uber e derivados.
Assumindo a mentira da Uber – que
presta um serviço diferente do dos táxis –, deram-lhe uma vitória que esta
empresa celebrou com estrondo, passando Portugal a ser apresentado como um
exemplo. Num momento em que vários Estados, regiões e municípios europeus resistem
e apertam o cerco à Uber, a maior brecha foi aberta por um Governo socialista.
Uma brecha que, tendo seguimento noutras atividades a que eufemisticamente
chamamos de “economia da partilha”, teria efeitos devastadores para as
economias nacionais por essa Europa fora. Querem continuarem a dar vitórias à
extrema-direita é este o caminho.
Nem as alterações impostas pelo
Presidente da República escondem o óbvio: o ministro do Ambiente, com o apoio
do PS e do PSD, fez uma lei à medida de empresas que entraram no mercado,
desrespeitando as regras previamente estipuladas. E funcionaram fora da lei
durante anos, não cumprindo sequer decisões judiciais. É o que dá a
websummitização do PS: os ministros começaram a acreditar na sua própria
propaganda.
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