quinta-feira, 20 de setembro de 2018

PELA NÃO UBERIZAÇÃO DA SOCIEDADE PORTUGUESA


Provavelmente, os taxistas constituem um dos grupos profissionais mais antipáticos para a população portuguesa, em particular para a parte mais progressista de todos nós, com sobejas provas da sua generalizada reaccionarice. Por isso mesmo, é bem crível que uma parte significativa dos portugueses não se identifique com a luta que estão a levar a cabo ainda que ela “corresponda a uma luta que nos envolve a todos, mesmo que a maioria não o entenda”, como afirma Daniel Oliveira (DO) na sua crónica de hoje no Expresso Diário. O mais espectável é que os taxistas jamais se envolvessem num protesto solidário com uma reivindicação que abrangesse outros grupos profissionais para além deles próprios. No entanto, a sua luta tem um alcance que os próprios “actores” desconhecem.
Aqui fica, pois, uma parte importante da crónica de DO sobre um tema que muitos portugueses desconhecerão o seu alcance. (Os sublinhados são da nossa responsabilidade)

À hora que escrevo este texto as manifestações dos taxistas ainda não acabaram. Não sei se alguma coisa acontecerá que volte a ensombrar a razão que têm. Se tiver acontecido, é mesmo de uma sombra que se trata. O que interessa, o que me interessa, é que a manifestação de hoje, mesmo que os seus atores não o saibam, corresponde a uma luta que nos envolve a todos, mesmo que a maioria não o entenda.
Claro que é excelente usar o telemóvel para ter tudo imediatamente. Mas como já são várias as aplicações disponíveis para os táxis com todas as valências que a Uber oferece, não é o avanço tecnológico que está em causa. Estão em causa três coisas: a utilização destas plataformas para destruir qualquer atividade económica regulada, a deslocalização duma parte substancial das receitas provenientes de atividades totalmente locais e a desregulação laboral, tornando todos os trabalhadores em “empreendedores” à jorna, sem qualquer direito e com rendimentos miseráveis.
Os transportes públicos, sejam coletivos ou individuais, são das atividades mais reguladas em qualquer sociedade desenvolvida. É normal a atividade de transportes urbano de passageiros ser entregue ao empreendedorismo de cada um em cidades do chamado “terceiro mundo”. É assim em Maputo, com os “capas”, em Luanda com os “candongueiros”, ou em Bombaim, com os tuk-tuk. Em cidades do chamado “primeiro mundo” há forte regulação para garantir a racionalidade de todo o sistema de mobilidade. Uma parte importante dos transportes públicos costumam estar a cargo do Estado e os privados estão sujeitos a regulação pouco habitual noutras atividades. Aceitar que há empresas que podem concorrer com outras, oferecendo exatamente o mesmo serviço (quem diz que a Uber faz aluguer de curta duração com motorista está só a brincar com as palavras), respondendo a regras diferentes é aceitar a concorrência desleal. Só há ultraliberais a defendê-lo porque veem aqui a oportunidade das empresas menos reguladas matarem as mais reguladas, impondo a desregulação económica como norma.
A desregulação tem sido filha da globalização. E isso resulta de uma contradição que ainda não conseguimos resolver: quem regula são os Estados nacionais numa economia global. O que quer dizer que não temos regulador eficaz, com poder político e capacidade de coação, para regulados globais. Só que isso não acontece com o transporte urbano. Porque opera localmente e não é deslocalizável. É uma atividade facilmente regulável. Ao contrário do que acontece com outras atividades, a riqueza que produz fica no país. Uma das características de fenómenos com a Uber é conseguirem retirar dos mercados locais boa parte dos rendimentos conseguidos por atividades não deslocalizáveis. É um processo de concentração mundial de riqueza que, neste caso, não resulta de qualquer inevitabilidade. Ele só é possível com a cumplicidade dos Estados. Se não quiserem carros da Uber nas ruas eles desaparecem.
Por fim, o tipo de relação contratual que a Uber define com os motoristas, transformando-os não em trabalhadores, não em colaboradores, nem sequer em fornecedores de serviços, mas em seus clientes (chamam-lhes “parceiros”, mas é uma parceria em que só um dos lados decide) corresponde a uma desvinculação entre as empresas e quem realmente faz o trabalho. Este tipo de relação laboral impede qualquer tipo de regulação ou defesa de quem trabalha.
Um estudo do “The Australia Institute” comparou os ganhos de motoristas do Uber com o salário mínimo previsto pela legislação do país e concluiu que se os preços cobrados subissem o suficiente para pagar o salário mínimo quase toda a vantagem de preço do UberX relativa a táxis tradicionais desapareceria. Um dos negócios da Uber é transformar os motoristas em “parceiros”, pô-los a pagar todas as despesas e concorrer com outras empresas sem assumir qualquer investimento para além da plataforma digital. Se esta forma de fazer negócios se impuser, mesmo em atividades locais, perderemos todas as conquistas sociais que nos permitem ter salário, férias, fins de semana, família, descanso, lazer, vida. A Uber pode ter um ar moderníssimo mas é, no tipo de relações laborais que impõe, mais antiga que do carro ou o telefone.
A adesão de muitos cidadãos, sobretudo jovens, à Uber é um daqueles clássicos em que o escravo contribui para a sua própria escravidão. De cada vez que usa a Uber está a criar as condições para que o seu futuro seja miserável, precário e totalmente desprotegido. Não condeno porque, como já escrevi várias vezes, não moralizo o comportamento dos atores económicos. Quem tem de prevenir os efeitos que este tipo de atividade têm na sociedade, na economia, na cidade e nas relações laborais são os que elegemos para regular a vida em comunidade: os políticos.
Vários países europeus estão a tomar medidas para limitar a concorrência desleal da Uber, Cabify, Chauffeur Privé e outras empresas do género, limitando o seu espaço de manobra, tentando manter os proveitos do negócio do transporte urbano na economia local e protegendo os motoristas que ficam com as migalhas do lucro multimilionário destas multinacionais. É por isso paradoxal que seja um dos poucos Governos de esquerda da União Europeia a dar a primeira grande vitória à Uber e derivados.
Assumindo a mentira da Uber – que presta um serviço diferente do dos táxis –, deram-lhe uma vitória que esta empresa celebrou com estrondo, passando Portugal a ser apresentado como um exemplo. Num momento em que vários Estados, regiões e municípios europeus resistem e apertam o cerco à Uber, a maior brecha foi aberta por um Governo socialista. Uma brecha que, tendo seguimento noutras atividades a que eufemisticamente chamamos de “economia da partilha”, teria efeitos devastadores para as economias nacionais por essa Europa fora. Querem continuarem a dar vitórias à extrema-direita é este o caminho.
Nem as alterações impostas pelo Presidente da República escondem o óbvio: o ministro do Ambiente, com o apoio do PS e do PSD, fez uma lei à medida de empresas que entraram no mercado, desrespeitando as regras previamente estipuladas. E funcionaram fora da lei durante anos, não cumprindo sequer decisões judiciais. É o que dá a websummitização do PS: os ministros começaram a acreditar na sua própria propaganda.

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