quarta-feira, 19 de setembro de 2018

PRIVATIZAR O OCEANO?


Mais uma vez tivemos hoje o privilégio de sermos brindados com um excelente artigo de opinião de João Camargo, especialista em alterações climáticas.
Camargo tem o condão de escolher temas para os seus textos que são da maior importância para Portugal e de reduzido conhecimento da maioria dos portugueses. Trata-se de alertas para todos nós. Bem-haja!
O tema de hoje, que vem à estampa no “Público”, tem como ponto de partida o pedido do Governo português às Nações Unidas no sentido de que a nossa plataforma continental seja “estendida para 3,75 milhões de quilómetros quadrados, basicamente duplicando a área hoje atribuída a Portugal, a Zona Económica Exclusiva [ZEE], de 1,727 milhões de quilómetros quadrados”. Para quê?
Tendo em atenção os nossos fracos recursos que não permitem uma fiscalização minimamente eficiente da nossa actual ZEE, o que se prevê que possa acontecer é a imediata atribuição de vastas extensões do oceano a empresas privadas que criarão “um novo campo de extractivismo industrial, desta feita no fundo do mar” sem outra intenção que não seja a obtenção do lucro máximo sem olharem a meios nem às consequências futuras das devastações que levarem a cabo.

Na semana em que ocorrem vários eventos em Lisboa relacionados com o mar, como o Portugal Shipping Week, o Oceans Meeting e o Seatrade Cruise Med, importa questionar: qual é a política para o mar deste governo?
Um dos eixos centrais defendidos para o futuro é a extensão da plataforma continental, tendo o governo pedido às Nações Unidas que a plataforma continental (o fundo dos oceanos, não a coluna de água) fosse estendida para 3,75 milhões de quilómetros quadrados, basicamente duplicando a área hoje atribuída a Portugal, a Zona Económica Exclusiva, de 1,727 milhões de quilómetros quadrados. Se as Nações Unidas atribuírem esta zona ao controlo português, o Estado ficará com a responsabilidade por uma área 40 vezes superior ao território continental de Portugal. 
Nesta última década, em particular depois do crash financeiro, criou-se uma nova corrente económica de fuga para a frente. Esta corrente ignora tudo o que está a ocorrer no espaço em que vivemos: questões humanitárias e de direitos sociais e humanos pela sarjeta, a deslocação de milhões devido à destruição de países e saque de recursos, a inaudita crise de perda de biodiversidade, a degradação de todos os ecossistemas, o aquecimento e acidificação dos oceanos e, claro, as alterações climáticas. Esta corrente económica ignora tudo isto para dizer algo difícil de se perceber: esqueçamos o mundo real e atiremo-nos de cabeça para fazer coisas. Quais? Umas quaisquer. E os efeitos e consequências delas? Não interessa, desde que façamos coisas. E que essas coisas criem lucro, claro. O velho espírito do capitalismo, tal como Max Weber observara. A plasticidade do capitalismo nunca nos deve espantar, mas a sua total insanidade também não.
Vemos várias frentes desta corrente económica na acelerada financeirização da economia, na vertigem da revolução industrial 4.0, na corrida a Marte, no sonho/pesadelo da inteligência artificial, no pesadelo da geoengenharia, proposta insana de tentar manipular o clima. 
Nesta linha, a política proposta para o nosso mar é um Tratado de Tordesilhas de pernas para o ar. Em vez de pedirmos ao Papa para dividir o mundo conhecido entre Portugal e Espanha, pedimos às Nações Unidas para nos darem uma área colossal de mar, que colocaremos imediatamente à disposição de empresas privadas para criar um novo campo de extractivismo industrial, desta feita no fundo do mar. Atribuem-nos quase metade do Atlântico Norte para o governo lhe colocar uma quadrícula em cima e leiloar aquilo. Obviamente brinca-se muito com as palavras: diz-se que vai criar conhecimento, que vai criar emprego, que vai até haver maior protecção do mar. "Novos” actores vão dizê-lo também, na era do “astroturfing”. Mas o que se vai fazer, na prática, é privatizar o oceano. Para quê? Seguramente não para benefício do povo português, europeu ou outro qualquer. 
Se o governo estivesse preocupado com a protecção dos oceanos, colocá-la-ia na frente das suas prioridades. Que investimentos de monta foram feitos na Marinha ou na Autoridade Marítima Nacional? Quantas embarcações existem hoje para ter sequer capacidade de fiscalizar a nossa gigante Zona Económica Exclusiva? Estará o governo interessado em transformar toda esta zona numa área de protecção de peixe e mamíferos marinhos? Numa grande zona de gestão de bancos de pesca, bem delimitada e com reservas rotativas, permitindo usar racionalidade numa actividade que ainda envolve tanta gente no país? Em limitar o tráfego de embarcações junto à costa? Não. A política do mar quer explorações petrolíferas, minerações submarinas, extrair mais hidrocarbonetos sob a forma de hidratos de metano (uma vez mais no Algarve), extracções de materiais e recursos, sem sequer esboçar uma tentativa de avaliação do impacto destruidor das mesmas sobre os ecossistemas marinhos. Seria uma política de mar queimado que não poderia ter outro efeito que não fosse contribuir ainda mais para a degradação dos oceanos, dos quais dependemos há milénios.

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