Mais
uma vez tivemos hoje o privilégio de sermos brindados com um excelente artigo
de opinião de João Camargo, especialista em alterações climáticas.
Camargo
tem o condão de escolher temas para os seus textos que são da maior importância
para Portugal e de reduzido conhecimento da maioria dos portugueses. Trata-se
de alertas para todos nós. Bem-haja!
O
tema de hoje, que vem à estampa no “Público”, tem como ponto de partida o
pedido do Governo português às Nações Unidas no sentido de que a nossa
plataforma continental seja “estendida para 3,75 milhões de quilómetros quadrados,
basicamente duplicando a área hoje atribuída a Portugal, a Zona Económica
Exclusiva [ZEE], de 1,727 milhões de quilómetros quadrados”. Para quê?
Tendo em atenção os nossos fracos recursos que não
permitem uma fiscalização minimamente eficiente da nossa actual ZEE, o que se prevê
que possa acontecer é a imediata atribuição de vastas extensões do oceano a
empresas privadas que criarão “um
novo campo de extractivismo industrial, desta feita no fundo do mar” sem outra intenção
que não seja a obtenção do lucro máximo sem olharem a meios nem às consequências
futuras das devastações que levarem a cabo.
Na semana em que ocorrem vários eventos em Lisboa
relacionados com o mar, como o Portugal Shipping Week, o Oceans Meeting e o
Seatrade Cruise Med, importa questionar: qual é a política para o mar deste
governo?
Um dos eixos centrais defendidos para o futuro é a
extensão da plataforma continental, tendo o governo pedido às Nações Unidas que
a plataforma continental (o fundo dos oceanos, não a coluna de água) fosse
estendida para 3,75 milhões de quilómetros quadrados, basicamente duplicando a
área hoje atribuída a Portugal, a Zona Económica Exclusiva, de 1,727 milhões de
quilómetros quadrados. Se as Nações Unidas atribuírem esta zona ao controlo
português, o Estado ficará com a responsabilidade por uma área 40 vezes
superior ao território continental de Portugal.
Nesta
última década, em particular depois do crash financeiro, criou-se uma nova corrente económica
de fuga para a frente. Esta corrente ignora tudo o que está a ocorrer no espaço
em que vivemos: questões humanitárias e de direitos sociais e humanos pela
sarjeta, a deslocação de milhões devido à destruição de países e saque de
recursos, a inaudita crise de perda de biodiversidade, a degradação de todos os
ecossistemas, o aquecimento e acidificação dos oceanos e, claro, as alterações
climáticas. Esta corrente económica ignora tudo isto para dizer algo difícil de
se perceber: esqueçamos o mundo real e atiremo-nos de cabeça para fazer coisas.
Quais? Umas quaisquer. E os efeitos e consequências delas? Não interessa, desde
que façamos coisas. E que essas coisas criem lucro, claro. O velho espírito do
capitalismo, tal como Max Weber observara. A plasticidade do capitalismo nunca
nos deve espantar, mas a sua total insanidade também não.
Vemos
várias frentes desta corrente económica na acelerada financeirização da
economia, na vertigem da revolução industrial 4.0, na corrida a Marte, no
sonho/pesadelo da inteligência artificial, no pesadelo da geoengenharia,
proposta insana de tentar manipular o clima.
Nesta
linha, a política proposta para o nosso mar é um Tratado de Tordesilhas de
pernas para o ar. Em vez de pedirmos ao Papa para dividir o mundo conhecido
entre Portugal e Espanha, pedimos às Nações Unidas para nos darem uma área
colossal de mar, que colocaremos imediatamente à disposição de empresas
privadas para criar um novo campo de extractivismo industrial, desta feita no fundo
do mar. Atribuem-nos quase metade do Atlântico Norte para o governo lhe colocar
uma quadrícula em cima e leiloar aquilo. Obviamente brinca-se muito com as
palavras: diz-se que vai criar conhecimento, que vai criar emprego, que vai até
haver maior protecção do mar. "Novos” actores vão dizê-lo também, na era
do “astroturfing”. Mas o que se vai fazer, na prática,
é privatizar o oceano. Para quê? Seguramente não para benefício do povo
português, europeu ou outro qualquer.
Se o governo estivesse preocupado com
a protecção dos oceanos, colocá-la-ia na frente das suas prioridades. Que
investimentos de monta foram feitos na Marinha ou na Autoridade Marítima
Nacional? Quantas embarcações existem hoje para ter sequer capacidade de
fiscalizar a nossa gigante Zona Económica Exclusiva? Estará o governo
interessado em transformar toda esta zona numa área de protecção de peixe e
mamíferos marinhos? Numa grande zona de gestão de bancos de pesca, bem
delimitada e com reservas rotativas, permitindo usar racionalidade numa
actividade que ainda envolve tanta gente no país? Em limitar o tráfego de
embarcações junto à costa? Não. A política do mar quer explorações
petrolíferas, minerações submarinas, extrair mais hidrocarbonetos sob a forma
de hidratos de metano (uma vez mais no Algarve), extracções de materiais e
recursos, sem sequer esboçar uma tentativa de avaliação do impacto destruidor
das mesmas sobre os ecossistemas marinhos. Seria uma política de mar queimado
que não poderia ter outro efeito que não fosse contribuir ainda mais para a
degradação dos oceanos, dos quais dependemos há milénios.
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