Pese
embora a eterna verdade de que em política não há amigos, há interesses, é bom
não esquecermos quanto o ocidente deve ao heróico e sempre esquecido povo curdo
no combate ao terrorismo islâmico corporizado pelo Daesh.
Agora
que o perigo do auto-denominado Estado Islâmico está dissipado, a comunidade
internacional entregou os curdos à sua sorte ou seja, às garras do ditador
turco Erdogan.
A
mesma política hipócrita do ocidente que fecha os olhos á repressão, tortura e
assassinatos conta a população do Behrein que reclama por democracia é a que
assobia para o lado perante a acção do facínora Erdogan sobre o povo curdo.
Não
podíamos deixar passar em claro um raro e interessante texto (*) que hoje vem à
estampa no “Público” e que se debruça sobre esta problemática, colocando-o à disposição
dos frequentadores deste blog.
Os curdos, e nunca é de mais repeti-lo, foram, tanto na Síria
como no Iraque, o nosso dique, o nosso baluarte, a muralha de valentia e de
energia que nos protegeu do Daesh.
Por toda a parte, e certamente não menos na Síria do que no
Iraque, eles foram o ferrolho que fechou as fronteiras cujas portas os
exércitos iraquianos e turcos deixavam abertas e pelas quais chegavam,
escapavam, partiam de novo os islamistas que, ao mesmo tempo que colocavam a
região em suplício, vinham cometer atentados na Europa.
Alcançada a vitória, estes combatentes curdos, homens e
mulheres, tiveram a ingenuidade de pensar que iriam poder viver, em paz, no
território que tinham defendido e onde os seus foram mortos e descansam em paz.
E, devido a essa inocência, aí estão eles, mais uma vez, mas
desta feita em Afrin, no Nordeste da Síria, perseguidos, torturados, assassinados,
os seus restos mutilados – eles foram o nosso dique, o cordão sanitário que
cercava a peste islâmica, e ei-los perseguidos pelo porteiro maquiavélico, esse
vigilante das portas do Inferno, que é um Erdogan a transformar a sua geografia
numa alavanca de chantagem sobre o Ocidente.
Face a tanto cinismo, as altas esferas da comunidade
internacional parecem estar como os três macaquinhos da fábula.
Os olhos vendados face ao martírio destes homens e destas
mulheres que tanto são tão admirados numa altura como logo a seguir são
negligenciados.
Os ouvidos tapados, sobretudo para não ouvir o barulho que fazem
os canhões do neo-sultão – que tem o sarcasmo, a insolência e que, para sermos
totalmente sinceros, num amistura de cinismo orweliano e de júbilo manhoso, faz
um manguito ao chamar Operação Ramo de Oliveira.
Com o dedo sobre a boca, numa lamentável cobardia, fingimos
acreditar nas palavras de protesto de humildade plenipotenciária e benevolente
da propaganda de Ancara, e apenas sabemos repetir, acenando gravemente com a
cabeça: "Não se passou nada em Afrin, nada."
Alguns – em Moscovo – vêem neste manto de humilhação e de ódio
que os soldados turcos e a soldo da Turquia espalham no Curdistão sírio, o
preço a pagar pela vitória da sua viscosa estratégia regional.
Outros – em Washington – fazem habilmente o jogo das
antecâmaras, os demiurgos do chá das cinco encontraram neste consentimento dado
aos que estão a fazer a limpeza a solução para o seu novo desejo de ter paz sem
ter que fazer a guerra.
Por todo o lado reina o mesmo longo e doloroso silêncio. Ou
então há palavras que servem para nada: "O Oriente é complicado…
incompreensíveis histórias de fronteiras e do alianças retomadas… para quê
aborrecermo-nos com um país poderoso e soberano?" Ou então surgem os
comentadores de café, todos esses maliciosos e preguiçosos que, com o nariz
inclinado sobre o fundo dos mapas, já não levantam a cabeça, com medo de
vislumbrarem a sua própria cobardia, apenas sabendo repetir sem cessar que não
vale a pena morrer hoje por Afrin como não valeu morrer por Dantzig no passado…
É sempre a mesma história – infelizmente, uma história clássica
nas democracias –, os melhores amigos durante um determinado tempo, os irmãos
quando nos dá jeito, os camaradas de armas, apagam-se tão rapidamente como uma
história no Instagram.
É a continuação da longa noite para os povos usados e
depois abandonados como lenços de papel, os salvadores tornados excedentários,
os heróis instrumentalizados, mas somente durante o tempo de uma batalha porque
no que toca ao resto, são meros trocos no grande jogo das transacções
geoestratégicas.
O que é inédito, é que tudo isto também é fruto do pacto com o
diabo que fizemos com Erdogan e que, muito simplesmente, já não é
suportável.
A Turquia, tal como o gato de Schrodinger, pode, na realidade, e
visivelmente, estar ao mesmo tempo na NATO e fora dela. Pode aspirar a
abrigar-se debaixo do guarda-chuva, sem dúvida esburacado, da América, enquanto
liquida, sem o esconder, aqueles que foram os melhores aliados dos EUA.
A Turquia tem generais ambidestros, que com uma mão assinam
tratados de aliança eterna com Londres ou Paris e, com a outra, traem
imediatamente os seus compromissos e, com o seu ramo de oliveira, golpeiam os
seus supostos aliados.
A Turquia recicla os piores jihadistas, financia-os e
subrepticiamente volta aenviá-los para o combate, ao mesmo tempo que este
Estado policial continua a aspirar, como a Suíça, a Noruega ou a Bósnia, a ter
uma parceria estratégica com a União Europeia.
E a Turquia tem um Presidente que a nossa fraquesa tornou forte,
e por isso se sente, pelo menos até ver, suficientemente à vontade para,
através dos seus ministros, fazer declarações insensatas sobre como o suposto
massacre dos curdos não é nada comparado com a colonização da Argélia e por
isso não permite que a França lhe dê lições de moral.
Esta comédia atroz já dura há demasiado tempo.
Este ano de 2018, se não pusermos um travão a isto, ficará
marcado por uma lápide negra: e uma cortina de ferro, turca, que se abaterá
sobre o povo curdo.
Pôr travão a isto significa, hoje, romper, e não apenas
"congelar", esta farsa em que se tornaram as negociações de adesão à
Europa; dissolver a comissão parlamentar mista que continua a existir no
Parlamento de Bruxelas; expulsar a Turquia de um Conselho da Europa que a
condenou, entre parêntesis, 2812 vezes desde que lá entrou; e depois colocar
mesmo, e seriamente, a questão da sua presença no seio da Aliança Atlântica.
Erdogan não nos dá outra opção.
Ou fazemos estes gestos de elementar firmeza – ou, ao horror do
massacre dos curdos, juntar-se-á a vergonha de vermos rir o carrasco, e
continuará sempre a rir, sobre as ruínas da nossa honra.
(*) Bernard-Henri
Levy
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