terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

PELO ÊXITO DA UNIDADE DAS ESQUERDAS EM PORTUGAL


Num longo artigo de opinião assinado pelo Prof. Boaventura Sousa Santos (BSS) no Público de ontem, tendo como tema a “unidade das esquerdas”, o Director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, aborda numa primeira parte o historial da formação da actual solução governativa, pioneira “em termos da articulação entre vários partidos de esquerda”. Pouco conhecida internacionalmente dada, por um lado, a pequena dimensão de Portugal e, principalmente porque se trata de uma iniciativa pouco condizente com os objectivos dos grandes inimigos da democracia, o neoliberalismo e o capital financeiro, só agora começa a despertar alguma curiosidade dados os resultados entretanto obtidos e a solidez que demonstra.
Numa segunda parte do artigo, reproduzida a seguir, BSS define onze parâmetros que considera essenciais “para que as articulações entre forças políticas de esquerda tenham êxito qualquer que seja o futuro da solução portuguesa”.
Dada a curiosidade que a solução portuguesa começa finalmente a suscitar a nível internacional, parece-me oportuno definir alguns dos parâmetros para que as articulações entre forças políticas de esquerda tenham êxito qualquer que seja o futuro da solução portuguesa.
Primeiro, as articulações entre partidos de esquerda podem ser de vários tipos, podem resultar de acordos pré-eleitorais ou acordos pós-eleitorais; podem envolver participação no governo ou apenas apoio parlamentar. Sempre que os partidos partem de posições ideológicas muito diferentes, e se não houver outros factores que recomendem o contrário, é preferível optar por acordos pós-eleitorais (porque ocorrem depois de medir pesos relativos) e acordos de incidência parlamentar (porque minimizam os riscos dos parceiros minoritários e permitem que as divergências sejam mais visíveis e disponham de sistemas de alerta conhecidos dos cidadãos).
Segundo, as soluções políticas de risco pressupõem lideranças com visão política e capacidade para negociar. É o caso do actual primeiro-ministro e dos líderes dos outros partidos de esquerda. Não podemos esquecer que o fundador do PS, o Dr. Mário Soares, na fase final da sua vida política, tinha advogado este tipo de políticas, ao contrário, por exemplo, do fundador do PS espanhol, Felipe Gonzalez, que se virou à direita com o passar dos anos e se manifestou sempre contra quaisquer entendimentos à esquerda.
Terceiro, as soluções inovadoras e de risco não podem sair apenas das cabeças dos líderes políticos. É necessário consultar as “bases” do partido e deixar-se mobilizar pelas inquietações e aspirações que manifestam.
Quarto, a articulação entre forças de esquerda só é possível quando é partilhada a vontade de não articular com outras forças, de direita ou centro-direita. Sem uma forte identidade de esquerda, o partido ou força de esquerda em que tal identidade for fraca será sempre um parceiro relutante, disponível para abandonar a coligação. A ideia de centro é hoje particularmente perigosa para a esquerda porque o espectro político se tem deslocado no seu todo para a direita por pressão do neoliberalismo e do capital financeiro. O centro tende a ser centro-direita, mesmo quando afirma ser centro-esquerda. É crucial distinguir entre uma política moderada de esquerda e uma política de centro-esquerda. A primeira pode resultar de um acordo conjuntural entre forças de esquerda, enquanto a segunda é o resultado de articulações com a direita que pressupõem cumplicidades maiores que a descaracterizam como política de esquerda. Neste domínio, a solução portuguesa, embora constitua uma articulação entre forças de esquerda e eu considere que configura uma política moderada de esquerda, a verdade é que contém, por acção ou por omissão, algumas opções que implicam cedências graves aos interesses que normalmente são defendidos pela direita. Por exemplo, no domínio do direito do trabalho e da saúde. Tudo leva a crer que o teste à vontade real em garantir a sustentabilidade da unidade das esquerdas está no que for decidido nestas áreas no futuro próximo.
Quinto, não há articulação ou unidade sem programa e sem sistemas de consulta e de alerta que avaliem regularmente o seu cumprimento. Passar cheques em branco a um qualquer líder político no seio de uma coligação de esquerda é um convite ao desastre.
Sexto, a articulação é tanto mais viável quanto mais partilhado for o diagnóstico de que estamos num período de lutas defensivas, um período em que a democracia, mesmo a de baixa intensidade, corre um sério risco de ser duradouramente sequestrada por forças anti-democráticas e fascizantes.
Sétimo, a disputa eleitoral tem de ter mínima credibilidade. Para isso deve assentar num sistema eleitoral que garanta a certeza dos processos eleitorais de modo a que os resultados da disputa eleitoral sejam incertos.
Oitavo, a vontade de convergir nunca pode neutralizar a possibilidade de divergir. Consoante os contextos e as condições, pode ser tão fundamental convergir como divergir. Mesmo durante a vigência das coligações, as diferentes forças de esquerda devem manter canais de divergência construtiva. Quando ela deixar de ser construtiva significará que o fim da coligação está próximo.
Nono, num contexto mediático e comunicacional hostil às políticas de esquerda é decisivo que haja canais de comunicação constantes e eficazes entre os parceiros da coligação e que prontamente sejam esclarecidos equívocos.
Décimo, nunca esquecer os limites dos acordos, quer para não criar expectativas exageradas, quer para saber avançar para outros acordos ou para romper os existentes quando as condições permitirem políticas mais avançadas. No caso português, os detalhados acordos entre os três partidos revelam bem o carácter defensivo e limitado das políticas acordadas. A solução portuguesa visou criar um espaço de manobra mínimo num contexto que prefigurava uma janela de oportunidade. Recorrendo a uma metáfora, a solução portuguesa permitiu à sociedade portuguesa respirar. Ora respirar não é o mesmo que florescer; é tão-só o mesmo que sobreviver.
Décimo-primeiro, no contexto actual de asfixiante doutrinação neoliberal, a construção e implementação de alternativas, por mais limitadas, têm, quando realizadas com êxito, além do impacto concreto e benéfico na vida dos cidadãos, um efeito simbólico decisivo que consiste em desfazer o mito que os partidos de esquerda-esquerda só servem para protestar e não sabem negociar e muito menos assumir as complexas responsabilidades da governação.


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