Tendo
por ponto de partida um artigo de opinião que Pedro Nuno Santos, deputado do
PS, assinou esta quinta-feira no “Público”, a deputada bloquista Mariana Mortágua
faz uma análise política do que é actualmente a social-democracia na Europa,
concluindo que esta ideologia já não tem uma efectiva aplicação no Velho
Continente.
O artigo de Pedro Nuno Santos, “Os desafios da social-democracia”, dirige-se a um interlocutor errado. O congresso
do PSD é o último sítio onde esse desafio terá resposta. Pelo contrário, o
desafio começa em casa. Quais os conteúdos de uma verdadeira opção
social-democrata que o PS possa propor a si próprio? Sem esta definição, será
difícil ao PS, como defende PNS no final, “garantir que a mudança política
conseguida em 2015 seja uma efetiva viragem e não apenas um parênteses na
história do PS e da democracia portuguesa”.
1. A atual experiência governativa é historicamente
singular porque foi a primeira vez que o PS esteve disponível — ou foi forçado
pela aritmética eleitoral — a procurar um acordo com a esquerda. Ao contrário
do que afirma PNS, o Partido Socialista não “deixou de estar obrigado” a
governar com a direita, simplesmente porque essa sempre foi uma escolha. De
resto, o fundo dessa convergência — os pilares estruturais da alternância, do
Tratado Orçamental, as leis laborais e a submissão à NATO — mantém-se intacto.
É certo que os
acordos assinados com a esquerda permitiram suster a ofensiva liberal e remover
do programa do Governo propostas eleitorais do PS que a continuavam. Assim,
foram definidos alguns avanços e criadas condições para outros. A solução
política desta legislatura é essencialmente defensiva, com limitados ganhos
para a classe trabalhadora e que não resolveram os problemas estruturais do
país. Não é menos importante por isso, mas é o que é: um acordo político
imediato, longe de um projeto estratégico para redefinir Portugal.
A evolução neoliberal da família política socialista é um
fenómeno global. Os tempos dos Partidos Socialistas do ‘Estado de bem-estar
social’, no contexto de crescimento económico dos anos 1950 e 60, terminaram
com a estagnação dos anos 70. Não há volta atrás. Os seus novos programas
políticos integraram acriticamente os pilares da ofensiva neoliberal, ou, como
PNS bem identifica, a doutrina das “reformas estruturais": a globalização
económica, a flexibilização laboral, a liberalização financeira. A União
Europeia, liderada pela aliança entre a nova ‘social-democracia’ e os
conservadores, não é mais do que a institucionalização destes princípios: as
leis da concorrência que proíbem qualquer intervenção pública nas economias e
pressionam as privatizações; as regras orçamentais cegas; a suposta
‘independência’ do Banco Central Europeu, que serve para promover os mercados
financeiros. Foi aí que o programa social-democrata soçobrou e desistiu de si
próprio, arrastando todo o espectro político para a direita.
A social-democracia que inspira Pedro Nuno Santos prevaleceu num
tempo, já distante, em que a relação de forças era mais favorável ao trabalho,
em que o capitalismo vivia tempos de expansão económica e relativa estabilidade
geopolítica e financeira. Mas o mundo mudou. As organizações de trabalhadores
foram atingidas pelo avanço da precariedade. A política económica ficou
limitada pelo consenso que privilegia a disciplina de mercado e criminaliza
outras formas de intervenção pública. A globalização selvagem, combinada com a
liberalização financeira, criou superinstituições com poder para fazer ajoelhar
países soberanos. O resultado da globalização financeira é um capitalismo
diferente do que existia no pós-guerra, mais insustentável, mais perigoso,
incapaz de garantir prosperidade, quanto mais de distribuí-la. Hoje, a
social-democracia teria que ir muito além do conhecimento da “gramática
política e moral que separa a direita da esquerda”, como escreve PNS.
Precisaria de um programa ousado e transformador e o consenso europeu e liberal
não o tolera. A questão é a de saber se o PS ouve sequer as propostas de Pedro
Nuno Santos.
Um debate ideológico corre o risco de ignorar a política
concreta. As desastrosas vendas do Banif e do Novo Banco a capital estrangeiro,
os recuos no combate ao rentismo na energia, a hesitação perante o assalto aos
CTT ou o congelamento do essencial das leis laborais da direita, ou seja, a
prática do Governo, mostraram uma política que prefere não ir mais longe. A
social-democracia já não existe.
2. A questão prende-se então com os conteúdos
concretos de uma política que defendesse a maioria da população, quem vive do
trabalho. Como se desenha na prática um programa que cumpra o princípio de
liberdade baseado nos serviços públicos e na defesa do trabalho, tal como
enunciado por PNS?
Tal política teria certamente que começar pelo mundo do
trabalho, por uma profunda alteração da legislação laboral, com três objetivos:
pleno emprego, estabilidade e salário. Menos horário, como afirma PNS, mas
também a erradicação das formas legais de precariedade, a começar pelas
Empresas de Trabalho Temporário, e generalização da contratação coletiva como
forma de equilibrar a relação de forças. Passaria igualmente por uma reforma
dos serviços públicos, a começar pela Saúde. Não se trata apenas de colmatar as
falhas mas de investir para proteger o SNS da predação privada, invertendo-a.
Passa por resgatar as PPP e garantir a gratuitidade da saúde, mas também boas
condições de trabalho aos seus profissionais, equipamentos, medicamentos e
capacidade para internalizar as respostas que alimentam as rendas pagas aos
grupos da saúde privada. Nada disto se faz sem uma profunda alteração do quadro
legal da saúde em Portugal, e muito menos sem um substancial compromisso
orçamental. O mesmo se aplica à educação ou à cultura.
Há outras áreas em que o rentismo privado coloca em causa a
capacidade do Estado para ser um garante de progresso social e bem-estar. A
erradicação da pobreza energética não pode ser alcançada sem medidas que acabem
com os privilégios injustificados das elétricas. E qualquer Estado terá enormes
dificuldades em empreender um programa de investimentos estruturantes se não
tiver o controlo dos seus setores essenciais, como propôs Corbyn, a começar
pelas infraestruturas de produção e distribuição de energia.
Finalmente, uma agenda transformadora para Portugal não é
compatível com a atual política de gestão da dívida pública e contraria as
regras neoliberalizantes da União Europeia. É por isso que, para além de
concretização, esta agenda precisa de ousadia.
3. Em suma, a mudança
política em 2015 abriu um parênteses na ofensiva neoliberal em Portugal —
conduzida à vez por PS e PSD ao longo de mais de três décadas — e que teve o
seu expoente máximo nos anos da troika.
Para que não se feche, este parêntesis deveria deixar de sê-lo para se tornar
naquilo a que PNS chama “uma viragem”. Mas implicaria opções precisas, hoje
ausentes e, portanto, uma diferente relação de forças entre o PS e a esquerda.
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