No
texto seguinte que transcrevemos do “Público” de hoje e que tem como pano de
fundo a condenação de Lula da Silva, o autor, Henrique Lopes Valença, faz o
julgamento da acção do antigo Presidente do Brasil sob o ponto de vista
político, algo que tem aparecido em menor grau quando se aborda esta temática.
Na
verdade, as políticas levadas a cabo por Lula da Silva geraram desilusão à
esquerda e irritação à direita mas nunca uma unanimidade. A sua maior vitória
foi a redução significativa da pobreza e da desigualdade, num país “com um sistema político muito fragmentado”, onde
provavelmente não era possível ir muito mais além dada a correlação de forças
na Câmara dos Deputados porque o Partido que apoiava o Presidente detinha
apenas um sexto dos lugres.
Trata-se de um artigo muito interessante que vale a pena ler com
atenção.
A condenação de Lula da Silva tem sido um tema incontornável nas
últimas semanas. A poucos meses da formalização das candidaturas presidenciais,
o Brasil divide-se entre a celebração e a indignação perante a derrota judicial
daquele que seria o vencedor político das eleições deste ano. Para quem
acompanhou as discussões em torno do impeachment de Dilma Rousseff, a sensação
de déjà
vu é inevitável.
De forma a quebrar a monotonia, proponho aqui um outro
julgamento de Lula. Um julgamento assumidamente político que se preocupa não
com um triplex penhorado, mas sim com as transformações económicas e sociais
experienciadas pelo Brasil durante o ‘lulismo’ (2003-2010). Tendo em conta a
complexidade desta matéria, este não é um julgamento que se preste a
unanimidades – como aquela que prevaleceu no Tribunal de Porto Alegre.
Começo por aquele que é quase invariavelmente o ponto de partida
de qualquer defesa do ‘lulismo’: o progresso nos combates à pobreza e à
desigualdade, problemas tão enraizados na sociedade brasileira. Entre 1995, o
primeiro ano dos governos de Fernando Henrique Cardoso, e a tomada de posse de
Lula em 2003, a proporção da população em situação de pobreza esteve estagnada
em torno dos 35%. Em 2011, o primeiro ano pós-Lula, esta proporção era de 18,4%.
A desigualdade evoluiu no mesmo sentido. Antes de Lula, o
rendimento dos 20% de brasileiros com maiores rendimentos era 25 vezes superior
ao dos 20% com menores rendimentos. Com Lula, este rácio reduziu-se de 25 para
18. Para colocar estes valores em perspetiva, note-se que, em Portugal, o valor
deste rácio tem andado à volta de 6.
Estes resultados não podem ser atribuídos apenas ao Bolsa
Família, programa de prestações sociais que seduziu progressistas e liberais.
Na verdade, embora a percentagem da população coberta por este programa tenha
mais do que triplicado entre 2003 e 2010, o seu orçamento anual nunca chegou
sequer a 0,4% do Produto Interno Bruto (PIB). Tão ou mais importantes foram os
aumentos reais do salário mínimo na ordem dos 62% que, associados ao
crescimento do emprego formal, reforçaram o peso dos salários na composição do
PIB e dinamizaram o mercado interno.
No entanto, há quem argumente, como Lena Lavinas, que existe uma
ligação direta entre as políticas sociais do ‘lulismo’ e os níveis crescentes
de endividamento privado. Isto devido à opção política de atribuir às
prestações sociais o estatuto de garantias para facilitar a obtenção de
empréstimos. Mas também porque a aposta em transferências monetárias não foi
acompanhada pela promoção da provisão pública de serviços como a saúde ou o
ensino superior, obrigando assim a população a recorrer a dispendiosos seguros
de saúde ou empréstimos para estudar.
Igualmente polémicos são os efeitos do ‘lulismo’ sobre a esfera
da produção. Apesar da aceleração do crescimento económico, os governos de Lula
não conseguiram inverter a tendência de desindustrialização iniciada nos anos
80. Com efeito, na fase final do segundo mandato presidencial, as indústrias
extrativas e de construção ganharam peso relativamente às indústrias
transformadoras. E, entre estas, reduziu-se a contribuição dos setores de alta
tecnologia.
Estas mudanças na estrutura produtiva interna refletiram-se na
evolução das exportações. O seu valor em dólares disparou de 60 mil milhões em
2002 para 200 mil milhões em 2010. Contudo, como observa o economista Paulo
Gala, o Brasil perdeu complexidade económica durante este período, já que,
apesar de o valor das exportações ter aumentado, a diversidade e
particularidade dos produtos exportados diminuíram. E isto indicia um
retrocesso no seu nível de desenvolvimento económico.
Em 2002, o minério de ferro tinha sido a principal exportação
brasileira (5,1% do total), seguindo-se os feijões de soja (4,8%) e os aviões
da Embraer (4,3%). Oito anos depois, o minério de ferro continuava na
liderança, mas agora com uns impressionantes 15% das exportações totais. O
crude, que em 2002 representava 2,9%, ascendia em 2010 ao segundo lugar da
lista de produtos mais exportados com 8,5%. Em sentido inverso, o valor
conjunto das exportações de aviões e automóveis, dois produtos paradigmáticos
da indústria transformadora, caía de 7,5% em 2002 para 4,4% em 2010, ficando
atrás do açúcar (6,2%) e dos feijões de soja (5,4%).
Agravou-se, portanto, o problema histórico da economia
brasileira de excessiva dependência face às flutuações dos preços
internacionais de matérias-primas. Aqui, sublinhe-se, o ‘lulismo’ não foi
apenas uma vítima indefesa dessa espécie de prosperidade amaldiçoada que lhe
terá sido oferecida pelo contexto externo favorável à exportação de
matérias-primas. Pelo contrário, o segundo governo de Lula foi complacente com
esta situação e até a promoveu através da sua política industrial, apoiando
pro-ciclicamente as indústrias extrativas e o agronegócio.
Assim, em vez de unanimismos, a presidência de Lula desperta
sentimentos contraditórios. Por um lado, menos pobreza e desigualdade, por
outro, serviços públicos insuficientes. Dinamização do mercado interno – com endividamento
crescente. Aceleração da atividade económica – sem impedir a
desindustrialização.
Mesmo desiludindo a
esquerda e irritando a direita, talvez o legado de Lula tenha sido o ‘lulismo
possível’ num país estruturalmente desigual e com um sistema político muito
fragmentado, em que o partido do Presidente ocupava apenas um sexto dos lugares
na Câmara dos Deputados – bem menos do que o lobby
latifundiário representado pela Frente Parlamentar da Agropecuária. Esta será,
de resto, a posição do próprio Lula, que em tempos confessou (ou profetizou)
que, para governar o Brasil, até Jesus Cristo teria de se sujeitar a uma
coligação com Judas.
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