Cumprindo
uma promessa feita há um ano, o Bloco de Esquerda tornou público ontem o Projecto
de Lei que consagra a despenalização da morte assistida. Tratando-se de um tema
muito sensível em qualquer sociedade, nomeadamente em Portugal, o Bloco
entendeu, e muito bem, mediar um ano entre a apresentação do anteprojecto de
lei e o texto definitivo para que houvesse um período suficientemente longo de
reflexão na sociedade portuguesa. A verdade é que esse objectivo foi
conseguido, tendo-se organizado debates por todo o país, de modo que, neste
momento, a generalidade da população portuguesa deva sentir-se totalmente
esclarecida sobre um tema de relevante importância social.
Na
elaboração do Projecto de Lei acima referido, o deputado bloquista José Manuel Pureza
esteve sempre fortemente empenhado e é dele o artigo de opinião que
transcrevemos do “Público” de ontem e que apresentamos a seguir.
Um ano depois de ter
apresentado um anteprojeto de lei que consagrava a despenalização da
morte assistida, o Bloco de Esquerda torna hoje público o texto definitivo do
seu Projeto de Lei. Ele tem um objetivo essencial: aumentar em Portugal o
espaço da tolerância e o respeito da livre decisão de todas as pessoas em fim
de vida, não atirando para a prisão os profissionais de saúde que entendam agir
de acordo com esse princípio de tolerância e de respeito pela livre decisão.
O país amadureceu muito
a sua reflexão neste ano. Partidos – desde logo o Bloco de Esquerda –
associações, comunidades religiosas, autarquias e órgãos de comunicação
assumiram este assunto como de grande importância social e organizaram debates
em todo o país. Só o Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida
organizou doze debates em várias capitais de distrito e privilegiando públicos
diferenciados. Todas essas iniciativas tiveram uma impressionante participação
e foram momentos de argumentação serena e séria. A discussão sobre o respeito
pela vontade das pessoas em fim de vida teve uma intensidade e profundidade
inéditas. Quebrou-se a tutela de um conservadorismo rígido incapaz de se abrir
a esse respeito pleno. O país está hoje em condições de fazer escolhas serenas,
rigorosas, sem qualquer dramatização e com toda a coragem.
Para isso, foi essencial
mostrar que este debate tinha de fazer-se não sobre abstrações mas sobre
soluções concretas. Que o que está em causa não são regras morais sem rosto mas
soluções legais concretas que respondam ao desafio do sofrimento das pessoas
concretas. É isso que se exige a uma lei sensata e responsável. E centrar a
discussão nessas soluções legais concretas é o melhor contributo que se pode
dar para que da escolha que o país vier a fazer sejam expurgados extremismos e
medos irracionais.
Da nossa parte,
combateremos o medo e o autoritarismo como argumentos que se opõem à despenalização
da morte assistida.
O medo, em primeiro
lugar. Invocar o risco da eugenia, da prática de eutanásia sem pedido do
doente, da inclusão de doente psíquicos graves, chegando mesmo à sórdida rábula
das famílias frívolas que mandarão os seus velhos para a morte é agitar medos
primários para impedir que uma lei sensata possa ter lugar. A estratégia do
medo é uma estratégia populista, bem o sabemos. Ao populismo da exploração do
medo sem fundamento nós oporemos a responsabilidade de soluções equilibradas
que combinem autodeterminação com rigor.
Soluções equilibradas
são as que assentam, em primeiro lugar, numa definição muito rigorosa das
condições e requisitos a preencher pelo doente que peça a antecipação da morte.
Isso implica a cumulação de quatro elementos: um diagnóstico (doença incurável
e fatal ou lesão definitiva), um prognóstico (a doença em causa tem que ser
incurável e fatal), um estado clínico (sofrimento duradouro e insuportável) e
um estado de consciência (capacidade de entender o sentido e o alcance do
pedido). É também de equilíbrio e de responsabilidade que se trata quando se
retiram todas as consequências de que só pedidos livres e esclarecidos podem
ser causa de exclusão da ilicitude da antecipação da morte dessas pessoas,
excluindo, por isso, desse campo eventuais pedidos de menores e de doentes
mentais. Em terceiro lugar, uma lei equilibrada e responsável tem que prever
mecanismos de garantia do escrupuloso cumprimento do procedimento nela
consagrado para a antecipação da morte.
Uma lei razoável e
equilibrada é, por outro lado, a resposta certa ao autoritarismo de quem quer
manter a atual penalização da morte assistida. Não nos equivoquemos: os
críticos da despenalização reclamam a humanidade e a superioridade moral das
suas soluções mas, antes de tudo, mantêm a pena de prisão para quem se afaste
do que eles entendem por abordagem humana e moral da morte. É de autoritarismo
que se trata quando ao doente que livre e conscientemente pede a antecipação da
morte porque os patamares de dignidade que se fixou para si mesmo em toda a sua
vida estão irreversivelmente afastados, se responde com um claro não, em nome
de uma filosofia, de uma religião ou de um certo entendimento da vida, como se
essa filosofia, essa posição religiosa ou essa visão da vida fossem as únicas
com validade.
O que se joga na
despenalização da morte assistida não são conceitos nem princípios abstratos. É
uma lei adequada a uma sociedade plural como a nossa felizmente é. E que, por
isso mesmo, não imponha a ninguém que se prive das suas convicções fundamentais
adotando uma abordagem do seu fim de vida que o/a violenta. O que a sociedade
nos pede é que a lei corresponda com tolerância a essa pluralidade de caminhos
para o respeito da dignidade de quem está a morrer com um sofrimento indizível.
O que nos é exigido é que a lei responda com responsabilidade mas também com
humanidade ao desafio que é o sofrimento que desrespeita tanta gente no
processo de morrer.
É
para uma lei assim, que contrapõe ao extremismo a à intolerância a sensatez e a
responsabilidade, que o Bloco de Esquerda traz o seu contributo com o Projeto
de lei que hoje apresenta. Pela nossa parte, faremos tudo para continuar a
abrir o espaço da tolerância e do respeito pela dignidade de todas as pessoas.
É esse o nosso compromisso.
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