O Curdistão é uma região geocultural do Médio
Oriente maioritariamente habitada pelos curdos e “faz parte da área conhecida como Crescente Fértil
há mais de 3000 anos”.
Actualmente, os curdos são cerca de 30 milhões de
pessoas e constituem a mais numerosa nação do mundo sem Estado.
É longa a luta dos curdos pela sua autodeterminação
mas nos últimos anos têm sido referidos na comunicação social por se
encontrarem envolvidos na guerra que se trava no Médio Oriente e em que vários países
também tomam parte, directa ou indirectamente.
O texto que apresentamos a seguir, transcrito do "Público" de hoje, constitui uma
prova de solidariedade para com o povo curdo, vítima de uma tentativa de
genocídio por parte da Turquia, depois da sua valiosa resistência perante as
forças do Daesh. O seu autor é Sivan Zerdesti, membro do Congresso Nacional do
Curdistão.
No passado dia 1 de Fevereiro, Hasan Gögüs, embaixador da
Turquia em Portugal, escreveu uma crónica no jornal PÚBLICO intitulada "A operação militar da Turquia não é contra os curdos". Nela, afirma que "a Turquia combate
actualmente várias organizações terroristas" e "nenhum país pode
tolerar a presença de qualquer elemento terrorista nas suas fronteiras".
No meu direito de resposta, pretendo mostrar quem são os verdadeiros terroristas
e quais os "sucessos" das duas operações militares que Hasan Gögüs
refere.
O povo curdo é um povo milenar que habita a região nomeada
Curdistão, que faz parte da área conhecida como Crescente Fértil há mais de
3000 anos. Trata-se de uma zona geocultural do Médio Oriente reconhecida como
maioritariamente curda. Desde 2012, com a retirada do exército sírio (SAA) e do
aparelho do Estado dos territórios a norte do país, uma estrutura
político-social emergiu para ocupar o vazio deixado pelo regime sírio e estabelecer
uma zona autónoma segundo um novo modelo de organização social intitulado
Confederalismo Democrático.
A Federação Democrática do Norte da Síria (DFNS) é composta por
povos de várias etnias — curdos, assírios, turquemenos, tchetchenos, árabes,
entre outros — e busca implementar um modelo social que dê uma maior
representatividade à rica herança cultural que compõe o Médio Oriente, ao mesmo
tempo que procura estabelecer uma convivência pacífica entre povos que vêm
sendo massacrados ao longo de séculos de guerras imperialistas e de
colonialismo ocidental. Sinal desse colonialismo é o próprio Curdistão que,
aquando da divisão do império otomano no fim da 2.ª Guerra Mundial, ficou
esquecido pelas grandes potências e ficou dividido entre quatro Estados — Turquia,
Síria, Iraque e Irão.
Em 2014, Kobane escreveu as páginas da história tornando-se um
símbolo da resistência curda. Com o ISIS a rodear todo o norte da Síria, a
população de Kobane decidiu resistir e enfrentar o grupo takfiri, tomando as
armas. Na defesa de Kobane, 80% das pessoas que resistiram durante 134 dias aos
avanços jihadistas eram mulheres da Unidade de Protecção das Mulheres (YPJ),
que no dia 26 de Janeiro de 2015 anunciaram a libertação da cidade. Essas
mulheres tornaram-se os símbolos do modelo filosófico em que se baseia o
Confederalismo Democrático — Ecologismo; Anti-Patriarcado; e Comunalismo.
Hasan Gögüs mente ao afirmar que a DFNS pretende violar a
integridade territorial da Síria. Mente igualmente sobre os sucessos da Operação Escudo
do Eufrates. Quem é reconhecido internacionalmente por violar
a integridade territorial de vários países é a própria Turquia. Relembro os
territórios ocupados no Chipre e na região de Hatay, zona que historicamente
fazia parte da Síria e que, com a divisão do império otomano, foi ocupada pela
Turquia. O regime sírio continua até aos dias de hoje a não reconhecer a zona
como sendo turca. A Operação
Escudo do Eufrates é, na realidade, o início do imaginário político
do neo-otomanismo e da política expansionista e genocida do regime governado
pelo AKP com o apoio do partido de extrema-direita MHP. Ex-combatentes do ISIS
e de grupos locais vinculados à Al-Qaeda como a HTS emitiram várias confissões
às Forças Democráticas Sírias (SDF) onde indicavam que se tinham misturado com
a população local em Jarablus durante a campanha do Escudo
do Eufrates para assim se integrarem nas milícias controladas
pelo regime turco. Combatentes do ISIS também indicam que na mesma campanha não
ofereceram qualquer tipo de resistência às ofensivas turcas. Várias
organizações não-governamentais também demonstraram as várias ligações entre o
ISIS e a Turquia para a venda de petróleo e o cruzar de fronteiras de forma
livre de complicações.
A maior ameaça à integridade territorial da Síria e à
estabilidade no Médio Oriente chama-se Erdogan, graças ao seu apoio a bandos de
ideologia salafista e aos seus bombardeamentos e assassinatos que têm
massacrado a população curda, dentro e fora de portas. Em Bakur (Sudeste da
Turquia), a população curda vem sendo massacrada há décadas, com mais de 40.000
vítimas curdas nos últimos 30 anos. A política de terra queimada aplicada pelo
regime do AKP deixou as cidades de Mus bedlîs, Sûr, Dersim, Farqîn, Cizîr,
Sirnex, Bîsmîl, Silopîya, Nisêbîn, Sêrt, Gever, Colemêrg, Hezex completamente
destruídas, provocando deslocações massivas de refugiados. Se nos situarmos no
pós-golpe de Estado, mais de 134.194 pessoas foram demitidas da função pública,
pelo menos 100.155 foram detidas e 50.142 encontram-se na prisão. As
instituições internacionais têm amplamente documentados os crimes de guerra e
contra a humanidade cometidos em Bakur, onde centenas de pessoas, entre elas
dezenas de crianças, morreram às mãos do exército turco.
No passado dia 20 de Janeiro, o regime turco anunciou uma
operação militar terrestre e aérea que visa invadir Afrin, em cooperação com o
Exército Livre Sírio (FSA), conhecidos no Ocidente como “rebeldes moderados” —
Ahrar al Sham, Partido Islâmico do Turquestão Oriental, Tahrir al Sham, etc. —,
grupos locais da Al-Qaeda que estiveram anteriormente em aliança com o ISIS.
Existem também diversos vídeos que mostram um comboio militar turco a
dirigir-se à cidade de Idbil escoltados pelo exército do regime e pela Tahrir
al-Sham. Afrin é uma das poucas regiões que passou incólume à chacina de sete
anos em que se transformou a guerra na Síria, sendo, portanto, uma mentira a
afirmação do embaixador de que estão a ir "salvar os irmãos sírios".
É, na verdade, mais uma desculpa para exterminar um povo milenar e alterar a
estrutura demográfica da zona. Segundo censos do regime sírio, Afrin sempre foi
considerada uma região etnicamente curda, na qual mais de 80% da população é de
origem curda. Historicamente, toda a zona entre as montanhas de Zagros e Tauros
é considerada como a terra dos curdos.
O Direito tem dois pesos e duas medidas para o embaixador da
Turquia, que defende a invasão turca apelando ao Direito Internacional e às
resoluções do Conselho de Segurança, quando a mesma Turquia está a violar as
normas do Direito Internacional ao bombardear população civil e ao destruir
zonas residenciais e apagar a história cultural da zona. Pelo menos 300 pessoas
morreram desde o início da operação e mais de 25.000 foram forçadas a
refugiar-se nas montanhas, enquanto a destruição de zonas arqueológicas como
Nabi Hori e do templo de Ain Dara, construído em 1300 a.C., é levada a cabo.
Nas últimas semanas surgiram os primeiros relatos do uso de napalm contra a
população civil, também proibido pelo Direito Internacional. Importa também
falar do facto de que desde o início da operação militar mais de 700 pessoas
foram presas na Turquia por criticarem publicamente — em jornais ou redes
sociais — a operação militar em Afrin.
A forma como o
embaixador termina a sua crónica, ao escrever que a guerra da Turquia não é
contra um grupo étnico em particular, mas sim contra os "terroristas do
PKK-YPG-KCK", é prova da decadência deste regime. A hipocrisia e a
propaganda devem ser denunciadas e combatidas. Termino o meu direito de
resposta afirmando que a comunidade internacional e todas as pessoas que se
dizem defensoras dos direitos humanos devem erguer-se em solidariedade com o
povo curdo e condenar publicamente a agressão do regime turco ao povo curdo e à
integridade territorial da Síria.
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