Tanto quanto nos parece, e é uma pena, nenhum outro órgão de comunicação social, em especial, nenhum canal televisivo, pegou na reportagem publicada na última “Revista” do “Expresso” (19/5) sobre a situação que atualmente se vive no arquipélago da Madeira e que põe parcialmente a nu os desmandos cometidos pelo regime jardinista. O texto é muito longo pelo que optámos por transcrever apenas algumas partes mais significativas. Mesmo assim recomendamos a sua leitura integral. De qualquer maneira, o próprio título da reportagem diz muito sobre a forma com se vive naquela pequena parcela do território nacional. Uma autêntica ditadura onde apenas não existe (de modo formal) uma polícia política.
POBREZA, VERGONHA E MEDO
O anúncio de L. vem no “Jornal da Madeira”. O diário pago pelo governo regional de Alberto João jardim onde são publicadas apenas notícias positivas sobre a ilha e as atividades políticas do regime, tem uma secção de meia página de classificados com gente a oferecer-se para trabalhar. Ao telefone L. conta a sua história. Voltou para Câmara de Lobos, à casa dos pais. O cenário mudou durante o pouco tempo que esteve fora da ilha. Quando regressou, poucos dias depois de o IVA ter aumentado na Madeira de 16 para 22 por cento e a gasolina ter passado a ser a mais cara do país, o pai tinha sido recambiado para casa.”A empresa dele corre o risco de fechar.” O trabalho a dias da mãe, nas limpezas, tornou-se a única fonte de rendimentos deles e do irmão mais novo.
L. foi três meses para o Canadá como fazia dantes, mas o dinheiro acabou e a aventura não estava a resultar. “Não dominava bem o inglês e depois havia o problema do visto.” L. tem 19 anos e desde o verão do ano passado anda à procura de emprego com o seu curso de técnica administrativa. Onde for, o que for.
Para as famílias as coisas estão a piorar rapidamente na Madeira. Talvez fosse interessante ouvir o pai dizer o que pensa. Mas L. não aparece no local de encontro no coreto da Câmara de Lobos. Nem atende mais o telefone. Como L. também outros quatro desempregados com anúncios publicados no “Jornal da Madeira” decidiram faltar aos encontros combinados com o Expresso. E fazem o mesmo com o telefone. Deixam de atender.
Dos dramas deles fica pouco para dizer. Há o caso de M., também de Câmara de Lobos, o concelho da Madeira mais estigmatizado pela pobreza durante décadas. M. é professora primária sem emprego, disponível para cuidar de crianças. Mora em casa dos pais com a irmã igualmente desempregada. Sempre que pode, faz noites ao balcão de hotéis, “onde pagavam ao mês e agora pagam na hora”, só para cobrir os buracos nas escalas de plantão dos funcionários. Há ainda o caso de A. e da mulher, ambos desempregados. Pais de uma menina, moram em Santo António, um bairro de classe média no Funchal. A. trabalhava na construção civil e a mulher com o 12º completo, pôs um anúncio oferecendo-se para fazer limpezas.
Os anúncios de jornal são a minha última tentativa de dar um rosto à dupla austeridade da Madeira, uma expressão inventada para caracterizar a espécie de onda gigante que está a acostar no arquipélago, desde o momento em que, Alberto João Jardim assinou um compromisso com o governo de Lisboa em Janeiro. Na sequência da descoberta de uma dívida oculta de mais de 1100 milhões de euros, garantiu um resgate de 1500 milhões de euros para fazer face aos compromissos financeiros com os credores da região e, na verdade, para continuar a pagar os salários dos funcionários públicos, um quarto de toda a população ativa.
A pobreza está de volta à região com todo o seu impacto, mas as dificuldades ainda mal se percebem à superfície. Estão escondidas, debaixo de um manto de vergonha e medo. Ninguém fala, ninguém dá a cara. Os sindicatos, a associações de solidariedade social, os partidos políticos conhecem a realidade, mas não há forma de se arranjar famílias dispostas a contar a crise que estão a atravessar.
Vive-se uma espécie de transe. A onda está a chegar mas pode ser que haja uma saída, um truque de última hora, como noutros momentos do passado, quando Alberto João Jardim foi fintando os problemas. A onda está a passar. “Talvez o Alberto João os ouça”, diz uma mulher idosa no jardim municipal do Funchal, acompanhada de duas amigas, ao ver a manifestação do 1º de Maio marchar, com 300 pessoas a empunhar as tarjas dos sindicatos locais afetos à CGTP, para se encontrarem em torno do auditório ao ar livre e, depois de cantarem a Internacional Socialista e denunciarem os despedimentos coletivos mais recentes, darem lugar a uma banda brasileira, fazendo concorrência às febras oferecidas no tradicional programa do governo para o dia do trabalhador. “Será o que Deus quiser”, diz a mulher idosa.
A LEI DO SILÊNCIO
Nem no recinto do auditório do jardim entre os ouvintes mais interessados nos discursos de protesto, há famílias disponíveis para conversar com o Expresso. Só os dirigentes sindicalistas falam. Álvaro Siza da USAM, afeta à CGTP, explica como a enorme teia de dependência económica e social do governo criada desde que Alberto João Jardim chegou ao poder, em 1978, tornou as pessoas comprometidas. Dá um exemplo. “Há 30 mil casas de habitação sicial na Madeira, um quarto de toda a habitação na região, e uma boa parte das famílias têm as rendas em atraso. Já se soube que vai haver um aumento de 15% para todas elas. O governo vai exigir todo esse dinheiro que está por pagar, resta saber se terá coragem para despejar quem não paga.”
Na Nazaré, o maior bairro de habitação do Funchal, um pouco acima do Estádio dos Barreiros, onde joga o Marítimo, o gerente de um café admite que a proporção dos que deixaram de pagar a renda é grande. “Talvez metade. Vejo nas conversas que os vizinhos têm comigo.” E diz que é normal os apartamentos estarem a ser partilhados por três e quatro famílias. Mantêm-se calados. E depois há o resto, que é imenso, acrescentado por Ricardo Freitas, da UGT Madeira. “Não há quem não trabalhe ou tenha alguém a trabalhar para o governo. É claro que as pessoas têm medo de falar.”
Os que trabalham para o Estado dão conta, nos bastidores, da degradação a que a situação chegou, com a interminável espera da ajuda financeira que ainda há de vir do continente. Não há medicamentos nos hospitais, há tratamentos que são adiados. No ensino instala-se o caos e o improviso. “Em muitas escolas secundárias, os telefones estão cortados, os alunos têm de trazer o papel higiénico de casa e são os professores que andam a pagar do seu bolso o papel para as fotocópias e as refeições dos miúdos” diz Marília Azevedo coordenadora do Sindicato dos Professores da Madeira, “porque já não há sequer dinheiro para ter as cantinas a funcionar”.
E, pelo meio, vão ter de ser sacrificadas pessoas. Quem quer arriscar cair na lista negra? O plano de ajustamento aceite por Jardim impõe uma taxa de redução anual de dois por cento no número de funcionários públicos e um corte até ao final de 2012 de 15% de todos os quadros dirigentes da administração. Os que vivem melhor.
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DESESPERO E VERGONHA
Só não se esconde o que não se pode esconder. Há poucos meses, num prédio recente na área mais nobre da Ajuda, uma mulher tentou matar as duas filhas pequenas e suicidar-se de seguida com ácido. Foram hospitalizadas e sobreviveram. A mulher está internada sob custódia da polícia, para vir a ser julgada, mas a história correu a cidade como o sintoma de uma doença súbita e inesperada: o desespero. Estava inundada em dívidas, depois de se separar, incapaz de sustentar o nível de vida que tinha imposto a si própria. Uma irmã, também em dificuldades, suicidou-se um ano antes, atirando-se de um viaduto. E uma outra irmã fechou a loja que mantinha aberta, perto da catedral do Funchal, já depois dos últimos acontecimentos.
Comerciantes, empresários, profissionais liberais, altos funcionários da administração. A classe bem instalada também está a perder o pé.
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A administração regional tem como política não divulgar os números de pessoas que estão a ser penhoradas pelo fisco. Em parte para não causar alarme desnecessário, em parte porque há qualquer coisa de mórbido nisso.
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A pressão e o peso da vergonha são permanentes. Estão enraizados. E agora tudo se tornou mais difícil. Depois de tantas expectativas com é que se volt atrás? Políticos e técnicos de vários quadrantes reconhecem o óbvio: houve uma euforia na Madeira na última década, em harmonia com o espírito do tempo, quando o executivo de Jardim insistia em divulgar números de pobreza surpreendentemente baixos.
NÚMEROS FALSOS?
Roque Martins, um professor universitário de Coimbra que foi presidente da Segurança Social na Madeira até final de 2007, depois de convidado pessoalmente por Alberto João Jardim, lembra essa obsessão em pintar um quadro cor de rosa. “Passado pouco tempo de ter chegado ao cargo estranhei o facto de a cobertura do rendimento de reinserção social estar apenas a 60% e houve funcionários que acabaram por, meio a medo, revelar-me que tinham instruções superiores para não aprovar parte dos pedidos, apesar de as pessoas cumprirem os critérios para poderem receber a ajuda”.
O verniz estalou, recorda, quando num programa da RTP Madeira afirmou que a taxa de pobreza na região rondava os 22%, um número muito longe dos 4,5% anunciados pelo secretário regional dos Assuntos Sociais, impossível mesmo num país como a Suécia”. O seu mandato terminou ali. Foi dispensado.
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A bióloga, escritora e ativista política Violante Saramago, filha do Nobel Saramago, a viver na Madeira há várias décadas, sublinha que “o rendimento per capita da região só ultrapassou os 75% da média comunitária por causa do contributo do PIB da zona franca”. A ex-deputada e ex-vereadora lamenta como o governo regional foi incapaz de argumentar com a União Europeia sobre esse detalhe que fez a Madeira ficar excluída da lista das regiões ultraperiféricas, com direito a investimentos prioritários. Sendo que a zona franca, com novas regras, menos atrativas para as empresas estrangeiras, está a desintegrar-se e com ela todos os empregos qualificados para contabilistas e economistas.
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Os efeitos são inevitáveis. Na Cáritas da diocese do Funchal os pedidos de ajuda não param de subir. No final de 2011, eram mais 40% do que no ano anterior. E nos primeiros meses de 2012 eram mais 20% do que no Natal. Há 330 pedidos de auxílio por mês neste momento, mas a capacidade da Cáritas está limitada pelos seus dez colaboradores e duas dezenas de voluntários. “Nas zonas rurais, as pessoas estão a voltar a cultivar a terra. A situação urbana é muito mais grave”, descreve o presidente da organização, José Manuel Barbeito. “Desde final de 2010 que as coisas estão a evoluir rapidamente. E há uma nova franja, de classe média, a que não estávamos habituados. É a pobreza envergonhada.”
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