O regresso da esquerda ao poder, em França, assim como a vitória das formações partidárias da mesma área na Grécia, trouxeram alguma esperança àqueles que sempre entenderam que as políticas de austeridade que estão a ser levadas a cabo no velho continente não só não resolvem os problemas gerados pela crise como contribuem para o seu agravamento.
No rescaldo das eleições presidenciais francesas, e tendo como pano de fundo o resultado destas com a consequente derrota da direita, José Vitor Malheiros tece uma excelente crónica trazida à estampa no Público de hoje e sobre a qual vale a pena meditar. É um tipo de linguagem a que já começámos a estar pouco habituados.
Regressar ao que importa
"E, quando estiver no termo do meu mandato e olhar à minha volta, para ver o que fiz pelo meu país, vou-me colocar apenas duas questões: Será que fiz avançar a causa da igualdade? Será que permiti que a nova geração ocupasse o lugar a que tem direito no seio da República?"
As perguntas retóricas de François Hollande, no discurso que fez ontem, logo após o anúncio do resultado das eleições presidenciais francesas que lhe deram a vitória, não podiam ser senão enunciadas por um homem de esquerda. Isto não significa que o discurso me tenha parecido entusiasmante (não me pareceu, fazendo jus ao cinzentismo de que Hollande dá mostras na maioria das suas intervenções) ou sequer promissor (há muita ambiguidade e é possível, como diz Marine Le Pen, que Hollande apenas acrescente uma nota de rodapé sobre crescimento económico ao "tratado orçamental", para fingir que cumpre as suas promessas), mas há aqui, pelo menos na retórica, uma pedra branca que simboliza a esquerda: a igualdade.
É verdade que em França, pátria da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a igualdade não desapareceu do discurso político. Está por todo o lado nas insígnias da República e antes do euro estava nos francos, nos bolsos de todos os franceses. Mas daí a fazer da igualdade um ponto forte do discurso político ia um grande passo. E daí a fazer da igualdade a pedra de toque de uma política ia um abismo. Mas foi isso que Hollande fez ontem e isso é, em si, significativo e bom. E é bom porque, independentemente do que Hollande faça como Presidente, é tão necessário como pão para a boca voltar a colocar no discurso político algumas questões básicas que a direita conseguiu afugentar, combatendo, com um bullying eficaz e com um discurso pseudocientífico digno do materialismo histórico, todas as tentativas para as introduzir no debate social.
A igualdade é não só a parente pobre da trilogia republicana - principalmente depois da queda da URSS, que arrastou muitos bebés na enxurrada de água do banho justamente despejada no esgoto - mas a pedra de toque de uma política de esquerda. Não é concebível uma política de esquerda sem um combate activo à desigualdade e uma empenhada promoção da igualdade dos cidadãos.
Não é politicamente aceitável nem eticamente admissível que os benefícios sociais de que usufruem os cidadãos dependam do bairro onde nasceram, da família onde nasceram, da cor da sua pele, da sua religião, da maneira como se vestem ou da sua vida sexual. E no entanto, como sabemos, é isso que acontece, com a esmagadora maioria dos políticos fingindo hipocritamente que a desigualdade gritante e crescente que vemos nas nossas sociedades se deve apenas às diferentes aptidões manifestadas pelos vários indivíduos. De facto, a sociedade portuguesa - e a das muitas outras imperfeitas democracias - é uma sociedade de castas não oficiais, onde podemos apostar sobre o futuro que está reservado a uma criança conhecendo apenas a casa onde nasceu ou o sotaque dos pais. E isso porque deixámos de nos preocupar com a igualdade, que é apenas outro nome da justiça e da dignidade.
Para muitos políticos, nomeadamente para muitos dos que se dizem ou pensam de esquerda, a igualdade tornou-se uma ideia fora de moda, não só contrária à ideologia dominante mas impossível de defender sem ser acusado de idealismo, contrária ao pragmatismo necessário nesta era de "mercados". Segundo esta ideologia, que defende que apenas a competição entre os cidadãos permite o progresso, que a desigualdade é a consequência inevitável dessa competição e que ela é, por isso, não só inevitável como desejável, na boa linha do darwinismo social, a ideia da igualdade é o maior inimigo a abater. Compreende-se. A vingar, ela poria em causa a crescente acumulação de riqueza e de poder que tem lugar num número cada vez mais restrito de pessoas e de empresas. Daí, por exemplo, a febre de "avaliação individual" a que se assiste nas empresas e no Estado, uma ferramenta pseudocientífica que visa destruir qualquer ideia de igualdade e de cooperação, avalizar tratamentos diferentes e justificar privilégios, em nome das diferenças pessoais.
No último livro do historiador Tony Judt, Thinking the Twentieth Century, a transcrição de uma série de conversas que manteve antes de morrer com o também historiador Timothy Snyder, Judt atribui uma grande parte da responsabilidade pela degradação da ideia social-democrata e de bem público ao facto de os políticos, a partir dos anos 1970, terem deixado de se perguntar se algo estava "certo ou errado" para começar a avaliar as políticas segundo o seu impacto na produtividade. É a essa "catástrofe moral", para usar a expressão de Judt, que temos de tentar pôr fim, voltando a preocupar-nos com aquilo que continua a ser a tarefa nobre da política: proporcionar a todos, sem excepção, uma vida decente. Sabemos que a esquerda nunca o conseguiu fazer, mas também sabemos que a direita não o vai tentar alcançar.
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