Muitas vezes se evoca, com verdade, que o peso da remuneração do trabalho no total da riqueza produzida em Portugal, nas últimas décadas, tem vido sempre a perder para o capital.
Por outro lado, os fanáticos do regime vêm repetindo até à exaustão que a competitividade da nossa economia só melhora se os salários descerem ainda mais.
Acrescente-se a isto a notícia desta semana segundo a qual, quem quiser trabalhar como enfermeiro no sector público poderá ganhar a fabulosa quantia de 3,96 € (brutos). Se desse valor forem retirados os descontos para a Segurança Social e IRS, “é só fazer as contas” como diria alguém.
Soou a escândalo que, profissionais qualificados com um curso superior na área da saúde, possam vir a receber menos do que uma empregada de limpeza (sem desprimor para esta).
Mas o pior é que tudo isto se passa na maior das legalidades embora tenha todo o ar de uma extorsão mafiosa.
No texto seguinte que retirámos do “Público” de ontem, Manuel Loff chama a atenção, com exemplos, para a brutal discrepância que hoje existe na remuneração do trabalho, sem que isso tenha qualquer justificação.
A (in)dignidade do trabalho
3,96€ por hora. Brutos. Desconte daí Segurança Social, IRS. É quanto poderá ganhar se quiser trabalhar como enfermeiro no setor público nos próximos tempos, pagos não diretamente pelo Estado, mas por uma legalíssima empresa de prestação de serviços que, comportando-se como se fosse um mafioso da imigração ilegal, fica com 24% daquilo que o Estado paga a essa empresa para lhe pagar a si.
A ARS de Lisboa e Vale do Tejo lançou "um concurso público para aquisição de serviços de enfermagem, cujo valor-base era de 8,50€ por hora", mas "a maioria das firmas apresentou valores muito reduzidos face ao valor-base proposto, tendo sido adjudicado a um preço que variou entre 4,77 e 5,19€". O resto é um problema entre "as firmas que se apresentaram a concurso e os seus colaboradores" (PÚBLICO, 3.7.2012). Por outras palavras, a selva!
Mas, afinal, quanto vale o trabalho? Partindo do princípio que o salário é a base da organização coletiva das nossas vidas, dele dependendo o bem-estar, quanto é justo que recebamos por uma atividade que ocupa 30%-50% do nosso quotidiano? A remuneração do trabalho é um dos índices mais objetivos da dignidade social e moral que lhe atribuímos, e o direito a ele continua inscrito em muitas constituições, por mais que a política económica das últimas décadas se empenhe em ofender tal direito.
Quanto vale, por exemplo, o trabalho dos nossos patrões? Fui rever informações sobre alguns casos, e centrei-me naqueles que dirigem empresas com participação do Estado, que já foram integralmente públicas, e que gerem serviços públicos. O presidente da REN, Rui Cartaxo, por exemplo, ganhou em 2011 317 mil euros (cf. Correio da Manhã, 7.3.2012). Descontados os feriados e as férias, e consideradas oito horas de trabalho diárias, este montante corresponde a 171,54€/hora, isto é, o salário de mais de 43 enfermeiros. Na EDP, António Mexia terá ganho, em 2009, 703 mil euros em salários, mas um total de 3,1 milhões se agregados os prémios todos a que teve direito (cf. DN, 6.4.2010) numa empresa na qual o Estado tinha ainda uma posição preponderante. Por hora, o cálculo dá a bagatela de 1670€! Para lá chegar, juntem-se aí uns 422 enfermeiros, coisa pouca... Três anos depois - e quão desgraçados têm sido eles para a grande maioria dos portugueses, e para os clientes da EDP! -, a comissão de vencimentos da empresa propôs que Mexia mantivesse o salário e os prémios que ganha desde 2006 (cf. i, 16.3.2012). A crise, definitivamente, parece-se com as cheias: raramente chega aos andares de cima...
É claro que poderíamos passar para os salários absurdos de jogadores de futebol transformados em heróis nacionais. Cristiano Ronaldo, a ser verdade o que se escreve na imprensa, terá ganho em 2011 no Real Madrid, entre salários e prémios, 12 milhões euros, 6500/hora. Já agora, diz-se que declara ao fisco o salário mínimo espanhol... Nessa nova unidade da indignidade salarial, a de enfermeiros-portugueses-setor-público, isto dá mais ou menos uns 1640!
É aceitável esta discrepância? É possível Mexia ter 422 mais necessidades do que um enfermeiro? A sua formação de base (17 anos de escolaridade) é idêntica. É que nos repetem desde há anos que o problema é a baixa produtividade dos trabalhadores (e a dos gestores, não?), e culpa-se desse facto a comparativamente baixa preparação de grande parte da mão de obra. Não são 17 anos de formação de base suficientes?...
O problema da economia portuguesa não é esse. O problema está na guerra feroz que se tem vindo a travar contra o valor do trabalho para impor a legitimidade da desigualdade e da apropriação do valor produzido por quem trabalha. Quatro por cento dos trabalhadores recebem salários líquidos inferiores a 310€ por mês; 31,5% ganham entre 310€ e 600; 27,9% ganham entre 600€ e 900€. Nestes escalões estão quase 2/3 dos assalariados portugueses. Nas atuais circunstâncias, por quantas pessoas não se terá de distribuir esse dinheiro?
As coisas não foram sempre assim. O peso da remuneração do trabalho no conjunto da riqueza produzida em Portugal tem vindo a descer quase permanentemente desde 1975. Segundo o Eurostat, essa proporção, sem considerar as contribuições patronais, era de 47,4% em 1973, 59% em 1975 e de apenas 34% (cálculos do economista Eugénio Rosa) em 2008! Por outras palavras, o trabalho representa hoje muito menos que no último ano da ditadura! À luz destes dados, que figura fazem as vozes cândidas que se perguntam como é que há gente desiludida com a democracia, se esta se transformou num liberalismo feroz que favorece os ricos?
Os estudos demonstram, e a nossa perceção o confirma, como é negativo o caminho feito por Portugal neste domínio: mais pobres cada vez mais pobres, poucos ricos cada vez mais ricos. E estes que nos explicam, pomposos, que a crise se resolve descendo mais ainda os salários. Os deles, não!; os dos trabalhadores que suam para que eles se façam mais ricos ainda.
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