segunda-feira, 2 de julho de 2012

AS PESSOAS NÃO CONTAM COMO GENTE?

O texto seguinte é de São José Almeida e vinha inserido no “Público” de sábado (30/6). Constitui um excelente libelo contra a doutrina neoliberal e a forma como está a ser aplicada em Portugal. Para esta doutrina que por ora é hegemónica a nível mundial “a gestão política está submetida ao critério do lucro, do mercado, do interesse privado empresarial”. As pessoas apenas contam como peças de uma máquina e não como “uma comunidade que tem como fim organizar-se de forma a obter o máximo bem-estar para todas”. Ainda que se trate de um texto longo, é de grande qualidade e a sua leitura vale bem a pena porque nos transmite de forma resumida o modo como funciona o capitalismo neoliberal.


PORTUGAL NÃO É UM NEGÓCIO

Portugal "não pode estar 37 anos sem gerar, uma única vez, um excedente orçamental". A afirmação é de Passos Coelho, primeiro-ministro do Governo português, e foi dita na Assembleia da República, na quarta-feira, em resposta à deputada d"Os Verdes Heloísa Apolónia, no debate preparatório da Cimeira Europeia. Ao fazer tal afirmação, Passos Coelho insultou os portugueses e insultou a história do país.

Passos Coelho não só insultou os portugueses como fez aquilo que pode ser considerado uma manipulação intelectual para obter dividendos políticos, distorceu e simplificou a complexidade da realidade, para afirmar uma suposta verdade absoluta, para a qual não admite discussão nem alternativa e que lhe advém da sua convicção política, próxima da fé-cega, no neoliberalismo.

Uma convicção numa doutrina política que submete o funcionamento da sociedade à lógica do lucro privado, que apenas entende a esfera pública com o objectivo de servir o interesse privado, e que tem como objectivo reduzir a mínimos assistencialistas as funções sociais do Estado e empobrecer a sociedade para aumentar o lucro de alguns: os detentores do sistema financeiro, a quem as aristocracias políticas servem.

Ora, segundo essa ortodoxia, que tem vindo a alastrar o seu poder nos últimos 30 anos e que hoje é culturalmente dominante e hegemonicamente reinante nas decisões políticas da União Europeia, a gestão política está submetida ao critério do lucro, do mercado, do interesse privado empresarial. Logo, o défice passou a ser imposto como princípio determinante da gestão dos Estados. Ou seja, os Estados passaram a ser vistos como empresas, como algo que tem de ter "um excedente orçamental", como algo que tem de dar lucro. E não como uma comunidade que tem como fim organizar-se de forma a obter o máximo bem-estar para todas as pessoas que a compõem, isto é, o interesse público. Passos Coelho, ao fazer a afirmação que fez, olhou para o país como quem olha para um negócio. E, por isso, ofendeu os portugueses.

Mas a afirmação de Passos Coelho vai mais longe na despudorada ofensa que faz aos portugueses e à sua história. E vai mais longe porque usa como critério para aferir a sua lógica de lucro os últimos 37 anos da história de Portugal, ou seja, de 1975 até hoje, comparando o que não é comparável e reduzindo a uma absurda simplificação a complexidade histórica e social. Passos Coelho reduz assim os últimos 37 anos a um fiasco, porque a sua preciosa contabilidade pública deu sempre défice.

O que Passos Coelho não disse - e que admito que provavelmente não saiba, pois não o quero acusar de o estar a omitir deliberadamente - é que a história de Portugal é caracterizada pelo défice do seu balanço comercial, uma característica próprio de um país que é periférico, pequeno e economicamente subdesenvolvido. Apenas em alguns anos do Estado Novo, a situação não se verificou, graças as famosas "campanhas do trigo", que nos anos quarenta diminuíram a importação de cereais, mas destruíram o equilíbrio agrícola do Alentejo ao introduzirem a monocultura do trigo.

O que Passos Coelho não disse - e que admito que provavelmente não saiba, pois não o quero acusar de o estar a omitir deliberadamente - é que, até o seu querido e adorado neoliberalismo dominar a política europeia, o défice não era um problema determinante na avaliação e na gestão dos Estados. Mas que o desenvolvimento dos Estados era aferido e ainda é, segundo por exemplo a ONU, por critérios de desenvolvimento como os índices de mortalidade infantil, média de vida, esperança de vida, os níveis de prestação de serviços de saúde pública, as taxas de escolaridade, os índices de analfabetismo. E nestes domínios a história dos últimos 37 anos em Portugal é de absoluto sucesso.

O que Passos não disse - mas isto sabe e omitiu - é que os últimos 37 anos são os da história da construção e do sucesso da democracia. Em 1975 agravou o défice? E 1973? A diferença é que, em 1975, os portugueses começavam a deixar de andar descalços e passaram a ir todos - mas todos mesmo - à escola. É um ano em que o país começava a ser arrancado da miséria e da ditadura, graças à revolução de Abril.

Daí que haja uma pergunta que, como portuguesa que se sente ofendida, que não está disposta a ser insultada e que não está disponível para que a sua vida seja comparada aos resultados da contabilidade, sinto necessidade de fazer. Ao comparar o Portugal de hoje com o Portugal de há 37 anos e ao reduzir a história da democracia portuguesa ao insucesso do défice, qual a solução que Passos Coelho admite que seja viável para resolver a sua preocupação com a contabilidade num país periférico e economicamente subdesenvolvido? Que os portugueses voltem a andar descalços? O regresso à ditadura?

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