domingo, 22 de julho de 2012

REPOR A REALIDADE

O branqueamento da situação actual de Portugal, nos aspectos mais determinantes, é perfeitamente perceptível nos meios de comunicação social mais afectos ao regime e de maior audiência, como acontece nos vários canais televisivos. Ainda esta noite se pôde notar isso na homilia do prof. Marcelo na TVI. Para este político, ainda não fora do activo e afecto à actual maioria, está tudo a correr sobre rodas, sem uma palavra sobre o clamoroso falhanço que é a execução orçamental nem sobre a bomba-relógio social que constitui a espiral de crescimento do desemprego, para não darmos mais exemplos. Qualquer cidadão consciente deve aproveitar todas as oportunidades para ajudar a repor a realidade. O texto seguinte vinha inserido no “Expresso” de ontem, é assinado pelo sociólogo Pedro Adão e Silva e constitui uma opinião diferente daquela que todos os dias nos entra pela porta dentro.


DE SURPRESA EM SURPRESA

Basta recuarmos um ano para recordarmos as loas que eram tecidas ao memorando de entendimento. A troika, foi-nos dito, apresentava-nos o programa com as reformas estruturais que o país esperava há décadas. Por cá, num momento em que o patriotismo atingiu mínimos históricos, faziam-se sentir ondas de júbilo com o regresso dos salvíficos homens de negro. Um ano passado, chega a ser penoso assistir à troika a avaliar-se a si própria, tentando salvar a face perante uma solução que está a falhar.

O último relatório do FMI é exemplar da estratégia em curso. Colocada a Grécia de quarentena, Portugal tem de ser oferecido como exemplo de sucesso, dê por onde der: a aplicação do memorando é avaliada positivamente, mesmo que a execução orçamental esteja a falhar, o mercado de trabalho se afunde e ninguém faça ideia de como atingir as metas do défice para este ano e, pior, para o próximo. Até porque uma coisa é a realidade, outra a narrativa. E esta é simples.

Na Grécia, a “austeridade expansionista” não funciona porque as instituições são débeis, os políticos não se empenharam no cumprimento do acordo e o povo é ingovernável. Já em Portugal é uma outra história. O Governo é liderado por um ministro das Finanças sem reservas ideológicas face à receita, o primeiro-ministro quer mesmo, veja-se bem, “ir além da troika” e, sob pano de fundo, temos paz social. Perante isto, o memorando não podia mesmo falhar.

Tendo em conta que a culpa é da realidade e não do plano traçado, à troika só resta reforçar a dose aplicada. O desemprego cresce? Leve-se mais longe a reforma do mercado de trabalho e continue-se a baixar salários, acelerando o colapso da procura interna. As empresas estão sufocadas? Reduza-se a taxa social única, desequilibrando ainda mais o orçamento da segurança social. Os cortes dos subsídios são inconstitucionais? Encontre-se equivalentes do lado da despesa, talvez desmantelando o serviço nacional de saúde ou a escola pública.

Enquanto a realidade não se conforma com os seus pressupostos, os peritos que nos governam vão revelando a sua surpresa. Depois do ministro Gaspar ter declarado pausadamente que “não compreendia o que se estava a passar no mercado de trabalho”, esta semana o responsável do FMI declarou que “tinha sido uma surpresa a inconstitucionalidade dos cortes nos subsídios”. Perante tanta surpresa, não devíamos também nós avaliar a troika e as suas soluções? Afinal, o modelo que têm na cabeça não previa nada do que tem estado a acontecer e continuam incapazes de reconhecer que o agravamento da situação é também efeito das suas políticas.

Silva Peneda, um oásis de bom senso entre as figuras institucionais portuguesas, afirmou esta semana na SIC-N que não era de surpreender, para quem conhecesse a realidade da economia, que isto ia acontecer”, para logo acrescentar que, não havendo ajustamento sem dor, sentia uma inquietação: “Pode haver dor e não haver ajustamento”. Ora aí está uma coisa que nos tem faltado: políticos com realismo, capazes de travar os radicalismos ideológicos que nos governam.

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