quinta-feira, 25 de julho de 2013

GOVERNAR PARA GENTE


Deixamos aqui um importante texto que o conhecido e respeitado sociólogo Alfredo Bruto da Costa assina no Público de hoje. Dada a sua extensão resolvemos (abusivamente?) sublinhar algumas expressões que consideramos mais significativas.

1. Na sua carta de demissão, dirigida ao primeiro-ministro, disse o ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar: "O incumprimento dos limites originais do programa para o défice e a dívida, em 2012 e 2013, foi determinado por uma queda muito substancial da procura interna e por uma alteração na sua composição que provocaram uma forte quebra nas receitas tributárias. A repetição destes desvios minou a minha credibilidade enquanto o ministro das Finanças."

2. Está aqui o testemunho mais autorizado e insuspeito do falhanço global de uma política que visava, acima de tudo, atingir aqueles dois objetivos - falhanço que vem na sequência de sucessivos "sucessos" com que o Governo e a sua maioria encheram os dois anos de governação, e de sete "bem sucedidos" exames regulares associados ao resgate. Inexplicavelmente, tantos triunfos não conseguiram impedir que a credibilidade do ministro das Finanças fosse minada.

Uma leitura mecanicista do texto gaspariano permite concluir que a culpa do desastre estaria nas receitas tributárias, as quais, por sua vez, responsabilizariam pelo insucesso a procura interna. Ou seja, a responsabilidade estaria nos factos. Uma interpretação mais credível vai, porém, no sentido de a carta do ex-ministro das Finanças conter o reconhecimento do erro de política (e/ou do modo como foi implementada). Foi a "repetição dos desvios" que minou a sua credibilidade.

Em qualquer dessas interpretações, o que objetivamente decorre da carta do ex-ministro Vítor Gaspar é que a política seguida e/ou o modo como a mesma foi implementada falharam. O preço humano seria demasiado elevado mesmo no caso de sucesso. Perante o fracasso, poderemos estar, em perspetiva ética, perante um crime social de governação.

Outros aprofundarão os eventuais aspetos penais, nacionais ou internacionais, da situação. O que interessa aqui, é i) saber quem deve responder por este crime e de que maneira e ii) identificar as lições do fracasso para o futuro.

3. Pelo que respeita à responsabilidade, é evidente que as principais entidades envolvidas são o Governo, a troika e todos quantos (sobretudo na Europa, mas também fora dela) propalaram a ilusão de que "Portugal está no bom caminho".

4. Pela dureza das medidas e pelo modo impositivo como as tomaram, o Governo e a sua maioria puseram em causa o Estado de direito, fazendo tábua rasa de direitos consagrados na lei (por exemplo, no caso das pensões). Generalizou-se a ideia de que "vivemos acima das nossas posses", sem nunca se ter analisado quem, de facto, assim procedeu. Entretanto, é a generalidade da população que suporta os dislates dos aventureiros, especuladores e agiotas do mundo financeiro.

Debaixo da filosofia iníqua do poder absoluto do credor, o Governo e a maioria adotaram um conceito despersonalizante de "credibilidade externa", que os conduziu a um beco em que o principal condutor, o ministro das Finanças - trágica ironia! - viu minada a sua credibilidade. Esqueceu-se, além do mais, que, neste caso, não se trata de um negócio qualquer, mas de um acordo entre parceiros com obrigações recíprocas de justiça e solidariedade, que vêm do passado e se projetam no futuro.

5. O Governo e a maioria enfraqueceram a democracia. Suspensos nos resultados eleitorais, ignoraram que ser eleito é condição necessária de legitimidade democrática, mas não é condição suficiente. A legitimidade democrática exige também democraticidade no modo de exercer o poder. Devemos ser cautelosos quando lançamos os resultados eleitorais como fundamento único de legitimidade democrática dos eleitos, individualidades ou instituições, não para a recusar, mas para a temperar.

Por outro lado, não basta ter da liberdade uma noção meramente formal. A liberdade pode nada significar quando não estejam garantidas as condições do seu exercício. Quem passa fome (por não ter o que comer) não é livre (Amartya Sen). Antes do mais, não é livre de comer. Acresce que também não tem condições para exercer as outras dimensões da liberdade. Isto tem a ver com a qualidade da democracia.

6. Poderá haver quem pense que existe equidade na repartição dos sacrifícios. Importa, aqui, ter presente que a equidade se mede não apenas pelo que se retira do rendimento, mas também, e sobretudo, pelo que fica depois de retirados os impostos e os cortes.

Um estudo sobre seis países europeus revela que, em Portugal, entre 2009 e 2011, a percentagem do efeito das políticas de austeridade sobre o rendimento disponível das famílias variou inversamente com o nível do rendimento, tendo sido de -6% nas famílias mais pobres e de -3% nas mais ricas. No caso de famílias com crianças, os valores extremos foram de -9% e -3%. Relativamente aos benefícios sociais e pensões, as percentagens variaram entre -6% e -1% (Social Europe, European Commission, Novembro 2011, pp. 19, 21 e 22). Não há razões para admitirmos que em 2012 e 2013 terá havido maior equidade.

Seria interessante levantar de vez o crónico véu de silêncio e sombra que se estende sobre os sacrifícios a que estão sujeitas, em tempo de emergência, por exemplo, as 25 maiores fortunas de Portugal, que representavam 14,4 mil milhões de euros em 2012 (Online 24, lido em 20-07-2013).

7. A prática do Governo e da maioria esvaziou o respeito pela dignidade humana e pelos direitos humanos.

Vivemos um apagamento quase total dos direitos humanos na vida e no debate político em Portugal. Os direitos humanos não são benesses que os governantes concedem aos povos. São conquistas civilizacionais e culturais, nalguns casos conseguidas à custa de muito sacrifício e até de vidas humanas. O estado de "emergência" não pode servir para governar como se o país não tivesse história e fosse constituído por seres sem alma, nem dor, nem dignidade. Não são medidas assistencialistas que podem compensar a eliminação do quadro dos direitos económicos e sociais.

8. Está igualmente fora de dúvida a responsabilidade da troika. A postura autoritária da troika, designadamente no que respeita aos juros e prazos dos empréstimos e do conteúdo do programa de ajustamento, é inaceitável em qualquer caso, mas sobretudo quando se sabe que alguns (ou todos) dos seus membros nunca tinham trabalhado com países assimiláveis aos da zona euro. As frequentes declarações de responsáveis do FMI reconhecendo os seus próprios erros (e não só os seus) são outros tantos sinais da irresponsabilidade com que se tem agido sobre pessoas humanas como se tratasse de cobaias de laboratório, conduzindo a problemas humanos e sociais graves e em larga escala.

Para além de partilhar da responsabilidade do insucesso global do programa, a União Europeia está hoje transformada numa quinta dos mais poderosos (sob o comando do Governo da sra. Merkel e do sr. Schäuble). Também aqui a qualidade de contribuinte líquido tem pesado mais do que a qualidade, incomparavelmente mais pesada, de beneficiário líquido das vantagens económicas colhidas na União.

Finalmente, também são responsáveis pelo insucesso das políticas adotadas todos quantos, na Europa e fora dela, vêm repetindo o slogan ilusório de que "Portugal está no bom caminho".

9. Que implicações para o futuro do país? Antes do mais, a circunstância de que um governo que não reconheça o insucesso dos últimos dois anos, e a consequente necessidade de mudança profunda e urgente neste domínio, não está apto a governar Portugal.

10. Qualquer sociedade precisa de finanças equilibradas e dívidas resolúveis. São fatores importantes, porém, instrumentais. Mas precisa também do respeito pela dignidade humana, pela justiça social e pelos direitos humanos. São fatores que, além de importantes, constituem valores fundamentais, objetivos finais que integram o bem comum da sociedade. Quanto a isto, o desempenho do Governo e da sua maioria de apoio foi catastrófico, e o comportamento dos cidadãos mais ricos e/ou influentes não foi, de modo geral, particularmente edificante.

11. É imperioso que tanto o Governo como a troika e os governos mais influentes da UE abandonem a prática autoritária. Os ditames da troika não podem continuar a ser considerados como definitivos e inquestionáveis! O seguidismo acrítico perante os poderosos das finanças não constrói credibilidade, como ficou provado. Trata-se de um combate que, sendo em defesa de causas, terá de assentar numa estratégia de alianças europeias que se mostrem necessárias.

12. Quando os interesses/opiniões da troika e os de Portugal coincidem, algo vai mal, de um lado ou do outro, mais provavelmente do nosso. A UE sofreu um retrocesso notório na sua democraticidade e na vivência dos valores fundacionais de solidariedade e de justiça entre os Estados--membros. Só uma nova cultura poderá reavivar e reforçar esses valores, abolir a classificação dos países entre "mandantes" e "obedientes e obrigados" e retomar o caminho da construção de uma União civilizada, democrática, justa e solidária.

13. Por último, um ponto fundamental: o Governo terá de saber distinguir o técnico do político, procedendo por critérios de equivalência e equiparação. O Governo despromove-se quando negoceia com técnicos das instituições credores, por mais qualificados que sejam. As verdadeiras negociações devem ter lugar entre responsáveis políticos, nacionais e europeus, embora preparadas por técnicos, de um lado e do outro.

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