Deixamos aqui um importante texto que o conhecido e respeitado sociólogo
Alfredo Bruto da Costa assina no Público de hoje. Dada a sua extensão resolvemos
(abusivamente?) sublinhar algumas expressões que consideramos mais
significativas.
1. Na sua carta de demissão, dirigida ao
primeiro-ministro, disse o ex-ministro das Finanças Vítor Gaspar: "O
incumprimento dos limites originais do programa para o défice e a dívida, em
2012 e 2013, foi determinado por uma queda muito substancial da procura interna
e por uma alteração na sua composição que provocaram uma forte quebra nas
receitas tributárias. A repetição destes desvios minou a minha credibilidade
enquanto o ministro das Finanças."
2.
Está aqui o testemunho mais
autorizado e insuspeito do falhanço global de uma política que visava, acima de
tudo, atingir aqueles dois objetivos - falhanço que vem na sequência de
sucessivos "sucessos" com que o Governo e a sua maioria encheram os
dois anos de governação, e de sete "bem sucedidos" exames regulares
associados ao resgate. Inexplicavelmente, tantos triunfos não conseguiram
impedir que a credibilidade do ministro das Finanças fosse minada.
Uma
leitura mecanicista do texto gaspariano permite concluir que a culpa do
desastre estaria nas receitas tributárias, as quais, por sua vez,
responsabilizariam pelo insucesso a procura interna. Ou seja, a
responsabilidade estaria nos factos. Uma interpretação mais credível vai,
porém, no sentido de a carta do ex-ministro das Finanças conter o
reconhecimento do erro de política (e/ou do modo como foi
implementada). Foi a "repetição dos desvios" que minou a sua
credibilidade.
Em
qualquer dessas interpretações, o que objetivamente decorre da carta do
ex-ministro Vítor Gaspar é que a política seguida e/ou o modo como a mesma
foi implementada falharam. O preço humano seria demasiado elevado mesmo no
caso de sucesso. Perante o fracasso, poderemos estar, em perspetiva ética,
perante um crime social de governação.
Outros
aprofundarão os eventuais aspetos penais, nacionais ou internacionais, da
situação. O que interessa aqui, é i) saber quem deve responder por este crime e
de que maneira e ii) identificar as lições do fracasso para o futuro.
3.
Pelo que respeita à responsabilidade,
é evidente que as principais entidades envolvidas são o Governo, a troika
e todos quantos (sobretudo na Europa, mas também fora dela) propalaram a ilusão
de que "Portugal está no bom caminho".
4.
Pela dureza das medidas e pelo
modo impositivo como as tomaram, o Governo e a sua maioria puseram em causa
o Estado de direito, fazendo tábua rasa de direitos consagrados na lei
(por exemplo, no caso das pensões). Generalizou-se a ideia de que "vivemos
acima das nossas posses", sem nunca se ter analisado quem, de facto, assim
procedeu. Entretanto, é a generalidade da população que suporta os dislates dos
aventureiros, especuladores e agiotas do mundo financeiro.
Debaixo
da filosofia iníqua do poder absoluto do credor, o Governo e a maioria adotaram
um conceito despersonalizante de "credibilidade externa", que os
conduziu a um beco em que o principal condutor, o ministro das Finanças -
trágica ironia! - viu minada a sua credibilidade. Esqueceu-se, além do mais,
que, neste caso, não se trata de um negócio qualquer, mas de um acordo entre
parceiros com obrigações recíprocas de justiça e solidariedade, que vêm
do passado e se projetam no futuro.
5.
O Governo e a maioria
enfraqueceram a democracia. Suspensos nos resultados eleitorais, ignoraram que
ser eleito é condição necessária de legitimidade democrática, mas não é
condição suficiente. A
legitimidade democrática exige também democraticidade no modo de exercer o
poder. Devemos ser cautelosos quando lançamos os resultados eleitorais
como fundamento único de legitimidade democrática dos eleitos, individualidades
ou instituições, não para a recusar, mas para a temperar.
Por
outro lado, não basta ter da liberdade uma noção meramente formal. A
liberdade pode nada significar quando não estejam garantidas as condições do
seu exercício. Quem passa fome (por não ter o que comer) não é livre (Amartya
Sen). Antes do mais, não é livre de comer. Acresce que também não tem
condições para exercer as outras dimensões da liberdade. Isto tem a ver com a
qualidade da democracia.
6.
Poderá haver quem pense que
existe equidade na repartição dos sacrifícios. Importa, aqui, ter
presente que a equidade se mede não apenas pelo que se retira do rendimento,
mas também, e sobretudo, pelo que fica depois de retirados os impostos e os cortes.
Um
estudo sobre seis países europeus revela que, em Portugal, entre 2009 e 2011, a
percentagem do efeito das políticas de austeridade sobre o rendimento
disponível das famílias variou inversamente com o nível do rendimento, tendo
sido de -6% nas famílias mais pobres e de -3% nas mais ricas. No caso de
famílias com crianças, os valores extremos foram de -9% e -3%. Relativamente
aos benefícios sociais e pensões, as percentagens variaram entre -6% e -1% (Social
Europe, European Commission, Novembro 2011, pp. 19, 21 e 22). Não há razões
para admitirmos que em 2012 e 2013 terá havido maior equidade.
Seria
interessante levantar de vez o crónico véu de silêncio e sombra que se estende
sobre os sacrifícios a que estão sujeitas, em tempo de emergência, por exemplo,
as 25 maiores fortunas de Portugal, que representavam 14,4 mil milhões de euros
em 2012 (Online 24, lido em 20-07-2013).
7.
A prática do Governo e da maioria
esvaziou o respeito pela dignidade humana e pelos direitos humanos.
Vivemos
um apagamento quase total dos direitos humanos na vida e no debate político em
Portugal. Os direitos humanos não são benesses que os governantes concedem
aos povos. São conquistas civilizacionais e culturais, nalguns casos
conseguidas à custa de muito sacrifício e até de vidas humanas. O estado de
"emergência" não pode servir para governar como se o país não tivesse
história e fosse constituído por seres sem alma, nem dor, nem dignidade.
Não são medidas assistencialistas que podem compensar a eliminação do quadro
dos direitos económicos e sociais.
8.
Está igualmente fora de dúvida a responsabilidade
da troika. A postura autoritária da troika, designadamente no que
respeita aos juros e prazos dos empréstimos e do conteúdo do programa de
ajustamento, é inaceitável em qualquer caso, mas sobretudo quando se sabe que
alguns (ou todos) dos seus membros nunca tinham trabalhado com países
assimiláveis aos da zona euro. As frequentes declarações de responsáveis do
FMI reconhecendo os seus próprios erros (e não só os seus) são outros tantos
sinais da irresponsabilidade com que se tem agido sobre pessoas humanas
como se tratasse de cobaias de laboratório, conduzindo a problemas humanos e
sociais graves e em larga escala.
Para
além de partilhar da responsabilidade do insucesso global do programa, a União
Europeia está hoje transformada numa quinta dos mais poderosos (sob o
comando do Governo da sra. Merkel e do sr. Schäuble). Também aqui a qualidade
de contribuinte líquido tem pesado mais do que a qualidade,
incomparavelmente mais pesada, de beneficiário líquido das vantagens
económicas colhidas na União.
Finalmente,
também são responsáveis pelo insucesso das políticas adotadas todos quantos, na
Europa e fora dela, vêm repetindo o slogan ilusório de que "Portugal
está no bom caminho".
9.
Que implicações para o futuro do
país? Antes do mais,
a circunstância de que um governo que não reconheça o insucesso dos últimos
dois anos, e a consequente necessidade de mudança profunda e urgente neste
domínio, não está apto a governar Portugal.
10.
Qualquer sociedade precisa de
finanças equilibradas e dívidas resolúveis. São fatores importantes, porém,
instrumentais. Mas precisa também do respeito pela dignidade humana,
pela justiça social e pelos direitos humanos. São fatores
que, além de importantes, constituem valores fundamentais, objetivos finais que
integram o bem comum da sociedade. Quanto a isto, o desempenho do Governo e da
sua maioria de apoio foi catastrófico, e o comportamento dos cidadãos mais
ricos e/ou influentes não foi, de modo geral, particularmente edificante.
11.
É imperioso que tanto o Governo
como a troika e os governos mais influentes da UE abandonem a prática
autoritária. Os ditames da troika não podem continuar a
ser considerados como definitivos e inquestionáveis! O seguidismo acrítico
perante os poderosos das finanças não constrói credibilidade, como ficou
provado. Trata-se de um combate que, sendo em defesa de causas, terá de
assentar numa estratégia de alianças europeias que se mostrem
necessárias.
12.
Quando os interesses/opiniões da troika
e os de Portugal coincidem, algo vai mal, de um lado ou do outro, mais
provavelmente do nosso. A UE sofreu um retrocesso notório na sua
democraticidade e na vivência dos valores fundacionais de solidariedade e
de justiça entre os Estados--membros. Só uma nova cultura poderá
reavivar e reforçar esses valores, abolir a classificação dos países entre
"mandantes" e "obedientes e obrigados" e retomar o caminho
da construção de uma União civilizada, democrática, justa e solidária.
13. Por
último, um ponto fundamental: o Governo terá de saber distinguir o técnico
do político, procedendo por critérios de equivalência e equiparação. O
Governo despromove-se quando negoceia com técnicos das instituições credores,
por mais qualificados que sejam. As verdadeiras negociações devem ter lugar
entre responsáveis políticos, nacionais e europeus, embora
preparadas por técnicos, de um lado e do outro.
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