A recente comunicação ao
país do Presidente da República, como já se verificou, só veio acrescentar
crise à crise, não contribuindo em nada para aliviar as profundas preocupações
que atingem os portugueses. Antes pelo contrário, tudo ficou ainda pior. No entanto,
toda esta novela em que nos envolveram, contra a nossa vontade, tem-nos
desviado a atenção de situações importantes que, entretanto, se vão desenrolando.
Já aqui abordámos, mas não
é demais voltar ao assunto, “o acto de pirataria aérea e de terrorismo de
Estado” que o Governo português cometeu através da pessoa do Ministro dos
Negócios Estrangeiros, Paulo Portas, ao não autorizar uma escala técnica do avião
que transportava o presidente da Bolívia de regresso seu país. Está mais que
visto que Paulo Portas agiu a mando dos EUA ainda que infringindo de forma
clara a legalidade internacional. As ordens do império são para cumprir ainda
que para isso se faça letra morta da lei. Não foi por acaso que Portas recebeu
uma condecoração do governo americano, no tempo do seu amigo Bush. Ninguém esperava,
por isso, que o Governo português tivesse a hombridade de pedir desculpas à
Bolívia pelo acto inamistoso que cometeu. Antes pelo contrário, acabou por
acentuar, ainda mais, a sua atitude de arrogância e subserviência colonial.
Assim, tem todo o
cabimento o artigo de opinião, sob a forma de carta aberta, que o prof. Boaventura Sousa Santos assina hoje no Público, onde dá voz à
opinião de largas camadas da população portuguesa, usando o elevado prestígio
que goza em toda a América Latina.
Desculpe, Presidente Evo Morales
Esperei uma semana que o Governo do meu país lhe pedisse
formalmente desculpas pelo ato de pirataria aérea e de terrorismo de Estado que
cometeu, juntamente com a Espanha, a França e a Itália, ao não autorizar a
escala técnica do seu avião no regresso à Bolívia depois de uma reunião em
Moscovo, ofendendo a dignidade e a soberania do seu país e pondo em risco a sua
própria vida. Não esperava que o fizesse, pois conheço e sofro o colapso diário
da legalidade nacional e internacional em curso no meu país e nos países
vizinhos, a mediocridade moral e política das elites que nos governam, e o
refúgio precário da dignidade e da esperança nas consciências, nas ruas e nas
praças, depois de há muito terem sido expulsas das instituições. Não pediu
desculpa. Peço eu, cidadão comum, envergonhado por pertencer a um país e a um
continente que são capazes de cometer esta afronta e de o fazer de modo impune,
já que nenhuma instância internacional se atreve a enfrentar os autores e os
mandantes deste crime internacional. O meu pedido de desculpas não tem qualquer
valor diplomático mas tem um valor talvez ainda superior, na medida em que,
longe de ser um acto individual, é a expressão de um sentimento coletivo, muito
mais vasto do que pode imaginar, por parte de cidadãos indignados que todos os
dias juntam mais razões para não se sentirem representados pelos seus
representantes. O crime cometido contra si foi mais uma dessas razões.
Alegrámo-nos com seu regresso em segurança a casa e vibrámos com a calorosa
acolhida que lhe deu o seu povo ao aterrar em El Alto. Creia, senhor
Presidente, que, a muitos quilómetros de distância, muitos de nós estávamos lá,
embebidos no ar mágico dos Andes.
O senhor Presidente sabe melhor do que qualquer de nós que se
tratou de mais um ato de arrogância colonial no seguimento de uma longa e
dolorosa história de opressão, violência e supremacia racial. Para a Europa, um
Presidente índio é sempre mais índio do que Presidente e, por isso, é de
esperar que transporte droga ou terroristas no seu avião presidencial. Uma
suspeita de um branco contra um índio é mil vezes mais credível que a suspeita
de um índio contra um branco. Lembra-se bem que os europeus, na pessoa do Papa
Paulo III, só reconheceram que a gente do seu povo tinha alma humana em 1537
(bula Sublimis Deus), e
conseguiram ser tão ignominiosos nos termos em que recusaram esse
reconhecimento durante décadas como nos termos em que finalmente o aceitaram.
Foram precisos 469 anos para que, na sua pessoa, fosse eleito presidente um
indígena num país de maioria indígena. Mas sei que também está atento às
diferenças nas continuidades. A humilhação de que foi vítima foi um ato de
arrogância colonial ou de subserviência colonial? Lembremos um outro
"incidente" recente entre governantes europeus e latino-americanos.
Em 10 de Novembro de 2007, durante a XVII Cimeira Iberoamericana realizada no
Chile, o Rei de Espanha, desagradado pelo que ouvia do saudoso Presidente Hugo
Chávez, dirigiu-se-lhe intempestivamente e mandou-o calar. A frase "Por
qué no te callas" ficará na história das relações internacionais como um
símbolo cruelmente revelador das contas por saldar entre as potências
ex-colonizadoras e as suas ex-colónias. De facto, não se imagina um chefe de
Estado europeu a dirigir-se nesses termos publicamente a um seu congénere
europeu, quaisquer que fossem as razões.
O senhor Presidente foi vítima de uma agressão ainda mais
humilhante, mas não lhe escapará o facto de que, no seu caso, a Europa não agiu
espontaneamente. Fê-lo a mando dos EUA e, ao fazê-lo, submeteu-se à ilegalidade
internacional imposta pelo imperialismo norte-americano, tal como, anos antes,
o fizera ao autorizar o sobrevoo do seu espaço aéreo para voos clandestinos da
CIA, transportando suspeitos a caminho de Guantánamo, em clara violação do
direito internacional. Sinais dos tempos, senhor Presidente: a arrogância
colonial europeia já não pode ser exercida sem subserviência colonial. Este
continente está a ficar demasiado pequeno para poder ser grande sem ser aos
ombros de outrem. Nada disto absolve as elites europeias. Apenas aprofunda a
distância entre elas e tantos europeus, como eu, que veem na Bolívia um país
amigo e respeitam a dignidade do seu povo e a legitimidade das suas autoridades
democráticas.
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