Jorge Falcato, deputado do Bloco de Esquerda e
activista do Movimento (d)Eficientes Indignados foi baleado em 1978 por ter
protestado contra a realização de uma manifestação fascista e ficou paraplégico.
É ele o autor do seguinte artigo de opinião sobre a condição de deficiente em Portugal,
que transcrevemos do Público de hoje.
Apesar
da extensão do texto, chamamos a atenção para a importância da sua leitura dado
que os portugueses e portuguesas deficientes passaram a contar, desde há um mês,
com um deputado que diariamente sofre na pele os seus problemas.
Há
quem não consiga levantar-se da cama, não consiga tomar banho, vestir-se,
preparar uma refeição ou mesmo comê-la sem ajuda.
São
inúmeras as pessoas com deficiência em que a sua dependência de ajuda por
terceiros, decorrente das suas limitações funcionais, resulta em exclusão
social e sofrimento.
As
razões são diversas, mas todas estas pessoas poderiam ter uma vida activa e
digna se o Estado português tivesse uma política orientada para a promoção da
vida independente.
Pelo
contrário, as políticas que têm vindo a ser promovidas por sucessivos governos
apontam, no essencial, para soluções que agravam ainda mais as situações de
dependência.
O
Estado ou se desresponsabiliza, delegando nas famílias o acompanhamento e apoio
às pessoas que delas dependem, não as compensando minimamente dos custos
acrescidos que esta situação comporta, ou, por outro lado, promove a
institucionalização das pessoas dependentes.
Nem
uma nem outra solução elege a pessoa com deficiência como o sujeito central a
quem é necessário que o Estado forneça os meios para ter uma vida em igualdade
de oportunidades com os seus pares sem deficiência.
Esta
orientação é contrária aos compromissos assumidos na Convenção sobre os
Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Estado Português, que reconheceu a
igualdade de direitos “de todas as pessoas com deficiência a viverem na
comunidade, com escolhas iguais às demais” e comprometeu-se a tomar “medidas
eficazes e apropriadas para facilitar o pleno gozo, por parte das pessoas com
deficiência, do seu direito e a sua total inclusão e participação na
comunidade”, assegurando nomeadamente que:
a)
As pessoas com deficiência têm a oportunidade de escolher o seu local de
residência, onde e com quem vivem em condições de igualdade com as demais e não
são obrigadas a viver num determinado ambiente de vida;
b)
As pessoas com deficiência têm acesso a uma variedade de serviços
domiciliários, residenciais e outros serviços de apoio da comunidade, incluindo
a assistência pessoal necessária para apoiar a vida e inclusão na comunidade a
prevenir o isolamento ou segregação da comunidade;
Recorda-se
ainda que na Lei 38/2004, de 18 de Agosto, sobre o regime jurídico da
prevenção, habilitação, reabilitação e participação da pessoa com deficiência,
no Artigo 7.º - Princípio da autonomia, se define que a “pessoa com deficiência
tem o direito de decisão pessoal na definição e condução da sua vida.”
Passados
11 anos sobre a publicação desta lei, o que verificamos na prática é o
desrespeito pelos direitos enunciados, negando às pessoas com deficiência a
oportunidade de decidir sobre os mais variados aspectos da sua vida,
nomeadamente onde e como viver.
O
Estado em vez de criar condições para se manterem nas suas residências, no seu
enquadramento familiar e social, centra a sua intervenção na comparticipação de
soluções orientadas para o desenraizamento social e afectivo destas pessoas.
A
materialização desta política de institucionalização verifica-se quando
constatamos que o Estado comparticipa os lares residenciais com 971,62 euros
mensais por utente internado, mas, se a mesma pessoa optar por viver na sua
casa ou na da sua família, a comparticipação que poderá ter para contratar
alguém para o assistir é de 88,37 euros. Paradoxalmente, o Estado disponibiliza
672,27 euros a uma família de acolhimento, se a pessoa com deficiência for
viver na casa do vizinho.
É
de notar que, quer na situação de internamento em lares quer nas famílias de
acolhimento, as pessoas com deficiência ainda têm de comparticipar com uma
percentagem dos seu magros rendimentos que pode chegar aos 90%.
Perante
esta situação anacrónica, do ponto de vista do bem-estar emocional e da
qualidade de vida da pessoa, o conceito de vida independente é a saída para o
cumprimento dos compromissos assumidos pelo Estado quer na Convenção da Nações
Unidas já referida, quer na legislação nacional existente.
Cabe
à pessoa com deficiência “o direito de decisão pessoal na definição e condução
da sua vida.” Este foi o compromisso assumido pelo Estado português ao
ratificar a Convenção. E foi também o próprio Estado que na Estratégia Nacional
para a Deficiência 2010-2013 (ENDEF) prometeu desenvolver um projecto-piloto
que criava o serviço de assistência pessoal. Passados dois anos este
projecto-piloto não chegou sequer a sair do papel.
Para
concretizar uma política de vida independente será necessária uma articulação
com uma política de acessibilidade do meio edificado, e de uma efectiva
disponibilização de produtos de apoio.
Não
pretendendo neste texto enunciar de forma exaustiva o que poderá ser a
materialização de uma política de vida independente, há, no entanto, princípios
que são indispensáveis:
–
O utilizador poderá contratar directamente, contratar, treinar, supervisionar
e, se necessário, dispensar os seus assistentes pessoais.
–
Os recursos necessários são canalizados para o utilizador de assistência
através de pagamentos directos que são geridos pelo próprio.
–
Na avaliação das necessidades, a quantidade de horas de assistência pessoal é
determinada de acordo com o que permita aos utilizadores de assistência, em
combinação com o uso de produtos de apoio (ajudas técnicas), a adaptação do
ambiente onde vivem e trabalham, terem as mesmas opções e oportunidades que
teriam se não fossem dependentes de terceiros.
São
estas algumas das questões consideradas indispensáveis numa futura lei de vida
independente. Uma lei que irá libertar tanta gente de situações degradantes de
dependência, não só é necessária como é urgente.
Inúmeros
estudos demonstram que uma solução baseada no conceito de vida independente não
só aumenta substancialmente a qualidade de vida das pessoas com deficiência,
como exige menos recursos do que as políticas de institucionalização, sendo
mesmo uma medida de apoio ao desenvolvimento económico, dada a geração imediata
de emprego.
Não
sendo um argumento decisivo, dado que direitos humanos não se compram nem se
vendem, é, no entanto, a demonstração de que o Estado não tem desculpas, a não
ser o preconceito e a menorização das pessoas com deficiência no controlo e
definição das suas próprias vidas, para não implementar aquilo com que se
comprometeu ao subscrever a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com
Deficiência.
Com
os mesmos recursos é possível fazer mais e melhor.
Não há desculpas.
Sem comentários:
Enviar um comentário