A
maioria de esquerda na Assembleia da República prepara-se para infligir mais
uma derrota à direita pois vai aprovar “o alargamento do acesso às técnicas de
procriação medicamente assistida (PMA) a todas as mulheres”. Vai assim terminar
em Portugal mais uma forma de discriminação das mulheres, numa caminhada para
uma efectiva igualdade perante a lei de todos os cidadãos.
É
este o tema do seguinte artigo de opinião de Isabel Fiadeiro Advirta (*) que
transcrevemos do Público de hoje.
Portugal
está prestes a atingir o primeiro patamar da igualdade – aquele onde a posição
perante a lei é exatamente a mesma para qualquer pessoa, independentemente da
orientação sexual ou de qualquer categoria de discriminação. Foram muitos os
degraus para aqui chegarmos. Na semana passada, foi dado um passo fundamental
com o alargamento do acesso à candidatura à adoção a todos os casais; amanhã
será votado o alargamento do acesso às técnicas de procriação medicamente
assistida (PMA) a todas as mulheres.
Até
hoje, Portugal escolheu proibir (e punir) o acesso de algumas mulheres - todas
as que não estejam casadas ou unidas de facto com homens - a tratamentos de
fertilidade e a técnicas tão simples quanto a inseminação artificial. Porquê
limitar a aplicação de técnicas de PMA existentes a casos clínicos de saúde
reprodutiva em contexto heterossexual quando o acesso democratizado às mesmas
servirá para ajudar a fazer nascer mais crianças – e em última análise para
tornar mais pessoas felizes? Até agora, e desde 2006 (ano da primeira lei sobre
PMA), esta pergunta tem ficado sem resposta. Aliás, aquando da votação em 2012
de projetos que pretendiam alargar o acesso a estas técnicas a todas as
mulheres, Eurico Reis, atual Presidente do Conselho Nacional para a Procriação
Medicamente Assistida, perguntava precisamente se seria legítimo usar o poder
repressivo do Estado para veicular preconceitos. A resposta é simples, e é a
mesma, desde sempre – não, não é.
Desde
logo, a vontade de discriminar e de, pelo Estado, impor preconceitos sobre o
que deve ser uma família não é legítima e tem sido crescentemente contestada –
porque o alargado debate dos últimos anos tem mostrado o consenso científico
sobre o exercício da parentalidade por casais do mesmo sexo, mas também porque
é hoje claro para grande parte das pessoas que a igualdade perante a lei é uma
questão de Direitos Humanos. A vontade de discriminar já não é, portanto,
aceitável. A partir do momento em que é claro que a validade de uma família não
assenta na orientação sexual das pessoas adultas mas sim nas relações de amor e
respeito que prevalecem no núcleo familiar, é impossível também manter uma
posição limitada sobre a finalidade da utilização das técnicas de PMA.
Infelizmente,
não surpreende que a orientação sexual esteja tão claramente presente nos
últimos resquícios legais de um quadro legislativo que apenas há uns anos era
fortemente discriminatório. Mas na verdade também não surpreende que a última
discriminação na Lei – a que impede mulheres de acederem a um procedimento
médico simples – recaia sobre mulheres. Desde logo lésbicas, claro, porque
também diz respeito a casais de mulheres; mas sobretudo a mulheres, a qualquer
mulher que tenha vontade de engravidar e não o queira fazer com um homem.
Será
sequer discutível a ideia de que as mulheres devem poder decidir iniciar uma
gravidez com recurso às técnicas médicas existentes? A resposta a esta questão
parece-me também simples e muito óbvia: não. Trata-se de respeitar a vontade de
uma mulher - ou de duas mulheres. Talvez seja este o motivo para que esta seja
a última discriminação a cair. Ao contrário da candidatura à adoção, onde a
discriminação existente dizia respeito a casais de mulheres ou de homens, o
acesso às técnicas de PMA diz respeito apenas a mulheres, nomeadamente a
mulheres cuja vontade de serem mães pode não depender de homens. Que homofobia
e sexismo andam a par, não é novidade. Que o machismo esteja tão profundamente
enraizado talvez seja surpreendente.
A
ILGA Portugal tem feito ao longo de muitos anos vários comunicados públicos
sobre este assunto, na maioria dos quais a referência a Espanha é obrigatória;
porque na verdade, no país vizinho desde 1988 que as técnicas de PMA estão
disponíveis para qualquer mulher que as queira utilizar. 1988: significa que
uma criança gerada nessa altura tem hoje 27 anos. Espanha compreendeu há quase
três décadas a mais simples noção do que deve ser respeitar a vontade das
mulheres – e desde aí, tem servido como porto de abrigo a milhares de mulheres
portuguesas, muitas que atravessavam a fronteira para interromper uma gravidez,
e outras que ainda a atravessam para poder iniciar uma gravidez.
O
nosso país está agora em condições de, pelo contrário, passar a respeitar as
nossas vontades, os nossos direitos, a nossa autonomia, a nossa saúde sexual e
reprodutiva.
A
partir de amanhã, sim, Portugal será um país que garante direitos iguais a
todas as pessoas – e cuja lei não retira dignidade nem humilha ninguém. A
partir de amanhã, seremos iguais perante a lei. A partir de amanhã, qualquer
lei que seja feita passa a ser feita para incluir todas as pessoas porque a
discriminação na lei nunca mais será sequer tolerável. A partir de amanhã,
todas as vontades contam. Sim, as das mulheres também.
(*) Presidente da Direcção da ILGA Portugal
Sem comentários:
Enviar um comentário