Não
estaremos a exagerar se dissermos que as crónicas que o Prof. Mário Vieira de
Carvalho assina na imprensa escrita são sempre de grande qualidade sem que
necessite de usar um número exagerado de palavras.
Atente-se
às seguintes duas curtas expressões do artigo de opinião que ele assina no
Público de hoje e que apresentamos a seguir: “Vivemos entre dois
fundamentalismos: o neoliberal e o religioso” e “a economia transformou-se numa
máquina infernal de discriminação, exclusão e segregação sociais.” Tal qual! É como
se acertasse em cheio num alvo.
Na
realidade, se quisermos encontrar um meio de acabar com o terrorismo islâmico
precisamos conhecer a sua origem e como se alimenta. Infelizmente as análises
de comentadores que vamos lendo e ouvindo na comunicação social, no rescaldo
doa atentados terroristas de Paris, vá lá saber-se porquê, vão pouco para além
da rama dos acontecimentos, criticando mesmo aqueles que pretendem um
aprofundamento das causas que conduziram à situação actual. Procurar uma explicação
para tão criminoso acto não pode, de modo algum, significar que se esteja a
dar-lhe cobertura. Antes pelo contrário, é uma forma de o combater com
verdadeira eficácia.
Vivemos
entre dois fundamentalismos: o neoliberal e o religioso. São duas faces da
mesma moeda. Quem não compreender isto não compreende o falhanço do projeto
europeu nem o estado de guerra que se instalou no mundo.
Numa
das faces da moeda está inscrita a palavra humilhação. Na outra, a palavra
alienação.
A
humilhação continuada e permanente gera o ódio. Basta ouvir os apelos de
jihadistas: essa é a sua base de recrutamento. De onde vem tanta humilhação?
Vem,
em primeiro lugar, do grande foco incendiário – a mãe de todas as guerras – no
Médio Oriente: o conflito israelo-palestiniano. Se há uma origem última da
radicalização islâmica, só pode ser essa. Quer queiramos, quer não, o conflito
israelo-palestiniano transformou-se num conflito entre o Ocidente e o Islão.
Enquanto não for resolvido, o jihadismo continuará a reproduzir-se. Como é que
a Europa, os EUA e a ONU se permitem continuar reféns desse conflito
indefinidamente?
Vem,
em segundo lugar, da incapacidade de integração social e de diálogo
intercultural nos países europeus com maiores comunidades muçulmanas. Grande
parte dos jovens muçulmanos europeus sentem-se discriminados e excluídos. Nada
na Europa os mobiliza para uma “causa comum” – a começar pelos valores éticos
da democracia pluralista. Em contrapartida, a religião, levada ao extremo do
fanatismo, oferece-lhes essa “causa comum” – uma “causa comum universal” que
está para além dos países e das fronteiras: a da redenção pelo martírio. O que
lhes falta em empatia com a condição de cidadão europeu sobra-lhes em empatia
com a condição interiorizada de damné de la terre pronto
a matar (à imagem e semelhança da situação colonial descrita por Frantz Fanon,
no contexto da guerra da Argélia).
Inscrita
no reverso da medalha, a alienação. Em que consiste ela? Na destruição da noção
de bem comum. Os princípios constitucionais e as convenções e declarações de
direitos humanos tornaram-se letra morta. Conquistas sociais que promoviam a
coesão da sociedade, a integração, o sentimento de pertença, os laços de
solidariedade e o exercício livre e responsável da cidadania têm sido
gradualmente eliminadas. A economia transformou-se numa máquina infernal de
discriminação, exclusão e segregação sociais, isto é: numa máquina geradora de
anarquia, caos e miséria humana. É a isso que se dá eufemisticamente o nome de
“reformas estruturais”.
Trata-se
de banir da economia o investimento público e impor a lógica autopoiética do
sistema financeiro mundial ao que resta das funções do Estado, designadamente
dos Estados organizados na UE. O princípio último proclamado por ex-líderes
europeus falhados ou pela maioria dos atuais que seguem a mesma cartilha é um
princípio pós-político e pós-humano, não menos fanático do que a “causa comum”
dos jihadistas: o da subordinação de tudo e todos à competição cega pelas
melhores taxas de remuneração do capital. Numa inversão radical dos meios e dos
fins, a “utopia” do fundamentalismo neoliberal é criar um sistema financeiro
mundial a funcionar em clausura operativa, imune a qualquer interferência
heterónoma do mundo
da vida,
isto é, totalmente alienado do social e do humano.
Dir-se-ia que essa é “a norma fundamental pressuposta” (Hans Kelsen) que já
derroga um pouco por toda a parte o Estado de Direito democrático. Como se tal
não bastasse, ainda há os 3% de limite de défice do tratado orçamental e até a
pretensão de o inscrever na Constituição.
3% de défice: eis a nossa
grande “causa comum”! A que vem agora o anacronismo de gritar pela “causa
comum” de outrora – “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” – se ela está
bem morta e enterrada por trinta anos de alienação neoliberal?
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