domingo, 22 de novembro de 2015

DOIS FUNDAMENTALISMOS QUE SE ALIMENTAM MUTUAMENTE


Não estaremos a exagerar se dissermos que as crónicas que o Prof. Mário Vieira de Carvalho assina na imprensa escrita são sempre de grande qualidade sem que necessite de usar um número exagerado de palavras.
Atente-se às seguintes duas curtas expressões do artigo de opinião que ele assina no Público de hoje e que apresentamos a seguir: “Vivemos entre dois fundamentalismos: o neoliberal e o religioso” e “a economia transformou-se numa máquina infernal de discriminação, exclusão e segregação sociais.” Tal qual! É como se acertasse em cheio num alvo.
Na realidade, se quisermos encontrar um meio de acabar com o terrorismo islâmico precisamos conhecer a sua origem e como se alimenta. Infelizmente as análises de comentadores que vamos lendo e ouvindo na comunicação social, no rescaldo doa atentados terroristas de Paris, vá lá saber-se porquê, vão pouco para além da rama dos acontecimentos, criticando mesmo aqueles que pretendem um aprofundamento das causas que conduziram à situação actual. Procurar uma explicação para tão criminoso acto não pode, de modo algum, significar que se esteja a dar-lhe cobertura. Antes pelo contrário, é uma forma de o combater com verdadeira eficácia.
Vivemos entre dois fundamentalismos: o neoliberal e o religioso. São duas faces da mesma moeda. Quem não compreender isto não compreende o falhanço do projeto europeu nem o estado de guerra que se instalou no mundo.
Numa das faces da moeda está inscrita a palavra humilhação. Na outra, a palavra alienação.
A humilhação continuada e permanente gera o ódio. Basta ouvir os apelos de jihadistas: essa é a sua base de recrutamento. De onde vem tanta humilhação?
Vem, em primeiro lugar, do grande foco incendiário – a mãe de todas as guerras – no Médio Oriente: o conflito israelo-palestiniano. Se há uma origem última da radicalização islâmica, só pode ser essa. Quer queiramos, quer não, o conflito israelo-palestiniano transformou-se num conflito entre o Ocidente e o Islão. Enquanto não for resolvido, o jihadismo continuará a reproduzir-se. Como é que a Europa, os EUA e a ONU se permitem continuar reféns desse conflito indefinidamente?
Vem, em segundo lugar, da incapacidade de integração social e de diálogo intercultural nos países europeus com maiores comunidades muçulmanas. Grande parte dos jovens muçulmanos europeus sentem-se discriminados e excluídos. Nada na Europa os mobiliza para uma “causa comum” – a começar pelos valores éticos da democracia pluralista. Em contrapartida, a religião, levada ao extremo do fanatismo, oferece-lhes essa “causa comum” – uma “causa comum universal” que está para além dos países e das fronteiras: a da redenção pelo martírio. O que lhes falta em empatia com a condição de cidadão europeu sobra-lhes em empatia com a condição interiorizada de damné de la terre pronto a matar (à imagem e semelhança da situação colonial descrita por Frantz Fanon, no contexto da guerra da Argélia).
Inscrita no reverso da medalha, a alienação. Em que consiste ela? Na destruição da noção de bem comum. Os princípios constitucionais e as convenções e declarações de direitos humanos tornaram-se letra morta. Conquistas sociais que promoviam a coesão da sociedade, a integração, o sentimento de pertença, os laços de solidariedade  e o exercício livre e responsável da cidadania têm sido gradualmente eliminadas. A economia transformou-se numa máquina infernal de discriminação, exclusão e segregação sociais, isto é: numa máquina geradora de anarquia, caos e miséria humana. É a isso que se dá eufemisticamente o nome de “reformas estruturais”.
Trata-se de banir da economia o investimento público e impor a lógica autopoiética do sistema financeiro mundial ao que resta das funções do Estado, designadamente dos Estados organizados na UE. O princípio último proclamado por ex-líderes europeus falhados ou pela maioria dos atuais que seguem a mesma cartilha é um princípio pós-político e pós-humano, não menos fanático do que a “causa comum” dos jihadistas: o da subordinação de tudo e todos à competição cega pelas melhores taxas de remuneração do capital. Numa inversão radical dos meios e dos fins, a “utopia” do fundamentalismo neoliberal é criar um sistema financeiro mundial a funcionar em clausura operativa, imune a qualquer interferência heterónoma do mundo da vida, isto é, totalmente alienado do social e do humano. Dir-se-ia que essa é “a norma fundamental pressuposta” (Hans Kelsen) que já derroga um pouco por toda a parte o Estado de Direito democrático. Como se tal não bastasse, ainda há os 3% de limite de défice do tratado orçamental e até a pretensão de o inscrever na Constituição.
3% de défice: eis a nossa grande “causa comum”! A que vem agora o anacronismo de gritar pela “causa comum” de outrora –  “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” – se ela está bem morta e enterrada por trinta anos de alienação neoliberal?

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