É
uma coisa rara lermos na comunicação social escrita ou escutarmos na rádio ou televisão
alguém do PS a debitar ideias com uma linguagem marcadamente socialista. Trata-se
de uma quase heresia, de tal forma já nos habituámos a que os “socialistas”
pouco divirjam em relação à direita sobre aquilo que pretendem para o país e os
caminhos para lá chegarmos. A partir daqui, foi criada a designação “partidos
do arco da governação” em referência ao conjunto PS/PSD/CDS, como se apenas
estes tivessem direito a entrar em qualquer governo. Os restantes partidos com
assento parlamentar, PCP e Bloco de Esquerda, encontravam-se automaticamente
excluídos como se estivessem contaminados por qualquer espécie de sarna
política ou ideológica. Embora representassem em termos eleitorais uma grossa
fatia da população não podiam aspirar a mais do que um estatuto de tolerância magnânima
das restantes forças políticas.
Por
força do voto popular, e só por isso, abre-se agora a possibilidade real de PCP
e BE sustentarem um governo PS, ou seja, uma governação totalmente de esquerda.
Foi uma pedrada no charco do marasmo em que parecia estar mergulhada a política
portuguesa. A direita entrou em desnorte porque tinha como seguro que o PS
jamais se aproximaria dos partidos à sua esquerda para alcançar o poder. O que
tem vindo a acontecer sabem bem todos os que estão atentos à realidade
portuguesa actual.
Com
uma linguagem claramente de esquerda, Ana Benavente, socióloga e militante do PS
(*), comenta no texto seguinte que transcrevemos do Público de hoje, os
acontecimentos políticos que se iniciaram com os resultados das eleições
legislativas de 4 de Outubro.
1. Nas últimas semanas temos
sido bombardeados, nos jornais e na TV, com comentários e “análises” que têm um
ponto em comum. Traduzindo em linguagem simples, afirmam: “onde já se viu?” Que
a direita governe e nos massacre, que na Europa tenha deixado de haver
distinção entre conservadores e socialistas, que as desigualdades aumentem a
olhos vistos, pouco aflige os comentadores. Agora que a esquerda ouse tentar um
acordo para formar governo? Ai isso não. Ou porque tal nunca aconteceu ou
porque daí podem vir todos os perigos. Os mais democratas aconselham “vejam lá
no que se metem”.
Cresci
com a convicção de que é preciso ousar lutar para ousar vencer. Aflige-me a
resignação. Desde o 25 de Abril, sempre sofri por saber a esquerda maioritária
na Assembleia da República sem que nunca, mas nunca, se ousasse dar passos para
um entendimento que derrotasse a direita. Uma vez o PS até foi buscar um
deputado dito do “queijo limiano”, lembram-se? O PS com a direita, tudo bem,
não há problemas com a matriz ideológica nem leitura detalhada dos programas.
Agora o PS com a esquerda, ai que susto. E lá vão analisar cada palavra que
escreveram, escrevem ou pronunciam os partidos de esquerda. Aves agoirentas que
bem conhecem os seus interesses, do BPN ao BES.
2. Se votamos porque queremos
construir uma “Boa Sociedade” no quadro democrático, europeu e mundial, se
votamos contra a exploração, contra quem nos rouba e nos oprime, se votamos por
mais justiça social e pela democracia, então só podemos estar felizes com o
momento que vivemos.
Alguém
duvida que a Europa tem que rever a sua lógica dominante e os seus
procedimentos? Alguém duvida que governos europeus mais democráticos deverão
ter influência nessas mudanças?
Entre
nós, a dívida foi pretexto para nos castigar, marcando brutais retrocessos
económicos e sociais.
Quem
faz política hoje, são as agências de rating e os “mercados”. O último governo,
com “pés de veludo” e mão de ferro, deu cabo do Estado Social. Aumentou a
pobreza, cortou salários e pensões, deliciou-se com a troika, desmantelou o
mundo do trabalho – nunca houve tantos trabalhadores precários, contractos
individuais, muitos deles abaixo do salário mínimo e desde os anos 60 que não
se assistia a um tal êxodo de portugueses - piorou brutalmente o Serviço
Nacional de Saúde e a Escola Pública (de que pouco se fala e que vive
asfixiada, com as crianças pressionadas por exames que irão seleccionar os
“eleitos” e os “excluídos”, selecção contra a qual tanto trabalhámos). Destruiu
a Educação de Adultos e deu fortes machadas na Ciência.
3. Os portugueses votaram e a
coligação que governou nos últimos 4 anos tem menos votos que o PS, o PCP e o
BE juntos. E agora? Habituados que estávamos a que esquerda se guerreasse sem
dialogar, só se lê e se ouve estranheza e espanto! São capazes de se sentar a
uma mesa de negociações e de tornar a maioria aritmética em maioria política,
imaginem.
Quaisquer
que sejam as fórmulas a encontrar. A direita quase que endoidece diante de tal
realidade. Coisa que nunca se viu e, segundo eles, nunca se verá. E que vem aí
outra reforma agrária. E que “aqui d’el-rei” que nos tiram o poder. Acordam os
papões da nossa história. Falam do PREC e dos seus perigos. Querem-nos
submissos, venerandos e obrigados.
4. Por mim, celebro o diálogo à
esquerda. Rompeu-se um tabu. Viva a liberdade. Sempre estive muito mais perto
do PCP e do BE do que do PSD ou do PP. Na acção, na vida, nas propostas e nas
lutas.
E
o que a direcção do PS perdeu antes e durante a campanha eleitoral, ganha
agora. Em ousadia e esperança. As dificuldades serão muitas, não duvido (e não
o foram com a direita, que até teve, pelo meio, demissões irrevogáveis logo a
seguir revogadas?). É a democracia. E o que eu gostaria era que os cidadãos
tivessem um papel a desempenhar nestes novos caminhos. Ajudando a resolver o
que for difícil. Para além de bater palmas, para além de nos manipularem pelo
medo. Nós, que queremos mais e melhor democracia, estamos convosco. Contem com
a nossa vontade e energia. Contem connosco. Todos.
(*) Ex-deputada à AR (1995-2005) e ex-Secretária
de Estado da Educação (1995-2001)
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