segunda-feira, 16 de novembro de 2015

DE ONDE VEM O DINHEIRO?


José Gusmão, economista e um dos negociadores, por parte do Bloco de Esquerda, do acordo com o PS, analisa no seguinte artigo de opinião que assina hoje no Público, “os impactos das medidas negociadas entre os partidos à esquerda no parlamento, particularmente na esfera da política económica, fiscal e orçamental”.
Usando uma linguagem menos técnica e, por isso, mais acessível ao comum dos cidadãos, pensamos que Gusmão se sai muito bem na forma como explicita as suas ideias.
Os últimos dias têm sido marcados por várias notícias e análises sobre os impactos das medidas negociadas entre os partidos à esquerda no parlamento, particularmente na esfera da política económica, fiscal e orçamental. Todas essas notícias e análises incorrem no mesmo erro: calculam o impacto das alterações ao programa do PS em termos absolutos e não comparados. Tentarei, sem ser demasiado técnico, explicar porque é que essa análise é um erro, não político, mas sim matemático. E tentarei mostrar o verdadeiro impacto das medidas negociadas da única forma possível: através da comparação do cenário macroeconómico do PS com o que resulta da introdução dessas medidas.
Aprender a comparar
O programa de governo construiu-se a partir de um cenário base, que é o que consta do programa do PS. Assim, o impacto das medidas acordadas entre PS e os partidos à sua esquerda tem de ser calculado por comparação com esse cenário, que por sua vez se baseia no cenário-base da Comissão Europeia (entretanto alterado, com a revisão em baixa do défice). Caso contrário, a análise teria de incidir sobre a totalidade das medidas do programa do governo e não apenas sobre as que foram negociadas. Porque é que isto é relevante? Olhemos para as medidas mais significativas do ponto de vista orçamental, acordadas entre o PS e a esquerda:
1. O erro mais gritante nas análises que têm surgido é a contabilização da restrição da redução da TSU como um custo. A redução da TSU para trabalhadores e empregadores prevista no programa do PS representava uma perda de receita de 633 Milhões (M). A redução da TSU dos trabalhadores apenas com salários até 600€ e a eliminação da TSU dos empregadores reduzem este impacto a 109M. Estamos, portanto, a falar de um impacto positivo comparado de 524M (0,3% do PIB) em 2016. Este impacto é o principal fator explicativo para a redução do défice no novo cenário macroeconómico do PS, decorrente do acordo;
2. Também a reposição dos salários da função pública não pode ser quantificada como tendo um impacto de 400M, como já vi em vários sítios. O PS já previa a reposição em 50% (200M). A devolução de 25% por trimestre, como consta das medidas acordadas, representa uma reposição ao longo de 2016 de 5/8 (62,5%), ou seja um impacto de 50M adicionais de despesa.
3. No caso da actualização das pensões, o valor de 66M que tem aparecido está correcto, uma vez que o cenário de referência do programa do PS é o congelamento, ou seja, variação nula.
4.  A sobretaxa do IRS não foi objeto de acordo. A devolução de 50% já estava prevista no programa do PS e assim ficou. Logo, o "impacto" é zero.
Em resumo, de onde vem o dinheiro? Com três letrinhas se escreve a resposta: TSU. A redução da TSU que constava do programa do PS era uma medida caríssima, mas que agora foi reduzida a quase um sexto da sua dimensão. Além disso, convém lembrar que foram acordadas outras medidas que terão impactos positivos na receita através da tributação do capital mas que são ainda difíceis de quantificar. Na realidade, mais interessante do que discutir o suposto despesismo subjacente a este acordo, tese que só pode ser defendida por falta de informação ou má-fé, é discutir se este acordo pode gerar o estímulo económico desejado e preconizado pelas forças à esquerda do PS.
Crescer a sério
Essa análise também é crucial porquê? Porque o crescimento económico tem impacto no equilíbrio das contas públicas por duas vias: (1) uma economia que cresce gera mais receita fiscal e diminui as necessidades de despesa social, ambas com efeitos positivos no défice. (2) Como défice e dívida são calculados em função do PIB, se o PIB aumenta o valor desses rácios tende a diminuir.
É por isso que negligenciar os impactos macroeconómicos de uma determinada política orçamental, seja ela qual for, é sinal de pura incompetência técnica. É evidente que estes cálculos são mais incertos do que a contabilidade orçamental pura e, por vezes, desfasados no tempo, mas quem, por preguiça ou agenda ideológica, os ignorar, acabará sempre a enganar-se (ou a enganar).
O falhanço da austeridade está relacionado com este problema. As medidas de austeridade tiveram impactos macroeconómicos desastrosos e contraproducentes do ponto de vista do ajustamento orçamental. Assim se explica que o governo tenha falhado todas as metas para défice e dívida que constavam do memorando da troika, para todos os exercícios do seu mandato. Aliás, o ténue crescimento económico que observámos a partir de meados de 2013 tem simplesmente a ver com a forte redução da austeridade que ocorreu a partir do OE2013, graças, em grande medida, às decisões do Tribunal Constitucional.
Do ponto de vista do seu impacto macroeconómico, as medidas acordadas à esquerda visam concentrar o estímulo económico nos rendimentos mais baixos, em detrimento de mais reduções contributivas para os empregadores. Além disso, a folga orçamental obtida na TSU permitirá acomodar a mais do que provável derrapagem orçamental de 2015, protegendo por antecipação os rendimentos do trabalho e das pensões e o Estado social.
É evidente que a crise que o país enfrenta exigiria um estímulo contra-cíclico muito superior. No entanto, o acordo assinado com o PS foi negociado com base na premissa de que os compromissos financeiros de Estado português seriam observados. É este caminho apertado que percorrerá esta solução de alternativa à austeridade.

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