sábado, 28 de novembro de 2009

Berlim, o muro e a Europa


Por Elísio Estanque

1989 foi sem dúvida um ano de viragem, em larga medida devido à queda do "muro da vergonha" e ao fim do regime soviético. Esse ano abriu novos horizontes às sociedades do Leste europeu, ao mesmo tempo que simbolizou um golpe de morte nesse modelo de "socialismo". Vale a pena rever o filme Adeus Lenine (de Wolfgang Becker), porque ele nos ajuda a compreender, com fina ironia, o significado das ideologias e sentimentos contraditórios dos cidadãos da ex-RDA perante os escombros do Muro de Berlim.

A nossa ideia do campo soviético é, todavia, muito distorcida. Já visitei por diversas vezes essa região e dei-me conta que no quotidiano da ex-URSS a vida do cidadão comum ganhara, de facto, maior equilíbrio, sentido de segurança e de entreajuda. Houve uma desmaterialização das ambições que, ao longo de sucessivas gerações, deu lugar a expressões mais sólidas de convivialidade, de solidariedade e de humanidade. O individualismo cedeu o passo ao colectivismo e a ambição económica cedeu o passo ao capital intelectual e à formação cultural para todos. As crianças brincavam nas ruas e eram livres. Os sistemas de ensino e de educação funcionavam. Quem quisesse podia estudar até concluir a universidade. E terminados os estudos o emprego estava garantido.

Esse ambiente de estabilidade perdeu-se e o poder está agora nas mãos das máfias. É por isso que muita gente do Leste lamenta a queda do muro. Ninguém quer, como é óbvio, o regresso ao passado estalinista, dos "desaparecimentos" silenciosos de madrugada. Mas sentem saudades dos contextos amigáveis onde os valores humanos eram estimulados e os egoísmos combatidos.

Como afirmaram Marx e Engels, "tudo que é sólido se dissolve no ar" (Manifesto), e foi isso mesmo que aconteceu à velha utopia do socialismo do Leste. Mas a erosão não ocorreu apenas a Leste. A "utopia capitalista", sonhada por muitos dos que saltaram o muro como o mundo da opulência, da liberdade e das oportunidades, revelou-se, afinal, uma Europa (ocidental) já em crise, onde as liberdades políticas se conjugavam com desigualdades, miséria, pobreza e desemprego. As próprias classes médias - e o seu consumismo -, que haviam feito a inveja dos filhos do operariado da ex-RDA, já davam sinais de fraqueza e proletarização.

Por outro lado, com o fim da URSS e da guerra fria desapareceu também o "papão comunista", um dos principais álibis que serviram para erguer os nossos fascismos e o liberalismo do Ocidente, ou seja, se as ortodoxias de esquerda (comunistas) ficaram órfãs, também as ideologias de direita e de extrema-direita perderam a sua contraparte identitária.

Enfim, tanto no Leste como no Oeste muitos outros muros se perpetuaram. Dentro da própria União Europeia abundam os exemplos: os novos despotismos, as novas segregações, preconceitos, tráficos e exclusões de todos os tipos. Como retrata o recente filme Éden à l"Ouest (de Costa-Gavras), o paraíso europeu transporta consigo uma sucessão de infernos onde o mais inocente dos crentes está sujeito a cair. Por isso, muitos milhares dos que vieram do Leste não passaram do purgatório. Frustradas as esperanças, regressaram às suas origens, aí enfrentando a vida no mundo "pós-socialista". Centro de Estudos Sociais - Universidade de Coimbra

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