domingo, 1 de novembro de 2009

A carreira de um corrupto



Por Vasco Pulido Valente

Odr. Mário Soares pediu esta semana à imprensa e à televisão que não insistissem no que ele chama "sensacionalismo" e percebessem, de uma vez, que o "sensacionalismo" não "paga": não "vende papel", nem aumenta audiências. Logo por azar três dias depois saiu um novo "escândalo" das profundezas do Ministério Público. Pior ainda: esse escândalo alegadamente envolve antigos membros de um governo PS e um velho amigo do primeiro-ministro. Em prosa tremendista, o Ministério Público declarou que há no caso uma "rede tentacular". Não sei se há "rede" ou não há "rede". Só sei, como sabe, ou desconfia, a maioria dos portugueses, que o regime se tornou numa enorme rede de corrupção. E não tenho a menor dúvida sobre a maneira como na prática isso aconteceu.
Basta imaginar a carreira típica de um corrupto. Começou por se inscrever num partido (no PS ou no PSD, evidentemente). Ou tinha influência, própria ou da família, ou conseguiu arranjar um "protector" (um empresário, um advogado, alguém com prestígio ou com dinheiro) para se promover a presidente da concelhia ou a qualquer cargo de importância. Daí passou para a administração central, para a Câmara do sítio ou, com muita sorte, para uma empresa pública. Com o tempo chegou a uma situação em que podia "pagar" os "favores" que até ali recebera e fazer novos "favores", em que já participava como sócio. Entretanto conhecia mais gente e alargava pouco a pouco os seus "negócios". Se punha o pé fora da legalidade, punha com cuidado, bem protegido por amigos de confiança e pretextos plausíveis.
Um dia, por fidelidade ao chefe, "trabalho" no partido (financiamento directo ou indirecto) e recomendação de interesses "nacionais", foi chamado ao governo: a secretário de Estado, normalmente. No governo, proibiu ou permitiu conforme lhe convinha ou lhe mandavam e convenceu outro secretário de Estado ou mesmo um ministro mais "versado" ou "ingénuo" a colaborar na sua "obra". Torcendo um regra aqui, explorando uma ambiguidade ali, a sua reputação cresceu. Não precisava agora de se mexer. Era, como se diz no calão da tribo, um "facilitador". A iniciativa privada gostava dele, o "sector público" gostava dele, o alto funcionalismo (a quem, de quando em quando, dava uma gorjeta) gostava dele. Ninguém lhe tocava. O corrupto ascendia à respeitabilidade. E anda, por aí, no meio de nós.

Público, 31 de Outubro se 2009

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