segunda-feira, 20 de junho de 2011

ESTADO SOCIAL EM PERIGO

A defesa do Estado Social está na ordem do dia quando a direita pura e dura chega ao poder e tem as costas quentes pelas medidas impostas pela troika estrangeira. Os grandes beneficiários daquelas medidas vão ser os grandes grupos empresariais que já começaram a salivar perante a perspectiva de virem a abocanhar sectores tão apetecíveis como a saúde, a educação e a segurança social. A nossa direita extremista esfrega as mãos de contente porque vai ter um bom pretexto para aplicar as suas políticas com a desculpa de que foram impostas de fora.
O texto seguinte (edição impressa do “Público” de hoje) contesta muito claramente a já gasta argumentação liberal contrária à universalidade do Estado Social. É longo mas vale a pena ler

Estamos todos no mesmo barco?
“A historiadora Maria de Fátima Bonifácio (M.F.B.) decidiu partilhar com os leitores do PÚBLICO a sua estupefacção com o ideal, nunca integralmente instituído no nosso país, da universalidade, esteio de um Estado social robusto (PÚBLICO 5/6/2011). Trata-se de um ideal imparcial e distinto: todos os membros de uma comunidade política, independentemente da sua condição social, devem poder aceder gratuitamente a bens e serviços públicos financiados por impostos tendencialmente progressivos. M.F.B. decidiu também partilhar o seu preconceito, declarando nunca ter visto um argumento robusto para uma situação que considerou um exemplo de injustiça social, remetendo os leitores para as figuras da sua empregada doméstica e de Amorim, lado a lado num hospital, sem discriminações pecuniárias. Onde é que já se viu?
Dispomos de argumentos de economia moral, referentes à justeza de tal arranjo, e de economia política, referentes às condições para a sua sustentabilidade, que permitem contrariar o seu cepticismo.
Em primeiro lugar, o ideal da universalidade está na base dos estados sociais com maior capacidade redistributiva e com maior qualidade dos serviços, onde é maior a confiança social, porque são menores as desigualdades económicas e, logo, mais elevada a legitimidade dos arranjos sociais. É fácil perceber porquê: a universalidade é o meio mais eficaz para podermos dizer com algum realismo que estamos todos no mesmo barco, que temos, enquanto comunidade, bens partilhados. Desta forma, aumenta a "moralidade fiscal", a disponibilidade para pagar impostos progressivos mais elevados e para taxar os rendimentos do capital, sobretudo o que não tem aplicações produtivas, cuja importância tem aumentado. A probabilidade de fuga dos serviços públicos por parte dos grupos mais instruídos diminui e, logo, a pressão para o aumento da sua qualidade mantém-se. O acesso universal diminui os custos administrativos, pois economiza em controlos burocráticos desnecessários para criar barreiras contraproducentes. Diminui também a probabilidade de guetização dos mais pobres, condenados, em alternativa, a programas medíocres e subfinanciados, e dos que têm algumas posses, condenados a ficar na dependência de grupos financeiros cujo poder aumenta na proporção da vulnerabilidade das pessoas, resultando em transacções de mercado sistematicamente desiguais. A saúde é tão atractiva para os grupos financeiros, para as seguradoras, porque é muita a vulnerabilidade a explorar nas letras miúdas dos contratos. O recurso ao crédito para a educação é também uma área onde a vulnerabilidade dos estudantes e suas famílias é o outro lado de ganhos seguros para grupos predadores.
Em segundo lugar, temos a questão da sustentabilidade do Estado social, que tanto preocupa M.F.B. A famosa questão demográfica é menos importante do que o medíocre regime económico em que vivemos, com ganhos de produtividade reduzidos devido à fraca qualidade do capital e do investimento, oscilando entre a estagnação e a crise, com muito desemprego e precariedade, que impedem os mais jovens de planear a vida. Um regime que emergiu no final dos anos setenta com a vitória política da ideologia liberal que intelectuais como M.F.B. ainda hoje professam. De facto, a liberalização financeira, a desregulamentação das relações laborais ou as maciças privatizações criaram uma economia que é incompatível com o Estado social. Uma economia com traços claros: (1) intensificação da instabilidade financeira traduzida na multiplicação de crises financeiras, ou seja, de crises bancárias e/ou cambiais, cujo número triplicou quando comparamos com os "trinta gloriosos anos" do pós-guerra marcados pelo controlo estrito da finança;
(2) quebra do peso dos salários no rendimento nacional, declínio da actividade sindical e crise de uma economia europeia onde o salário continua a ser a maior fonte de procura e de crescimento económico;
(3) divórcio entre os lucros dos grandes grupos, em franca recuperação, e o investimento produtivo, em declínio;
(4) aumento dos lucros distribuídos, sob a forma de dividendos, a accionistas cada vez mais poderosos e impacientes, aliados a gestores de topo igualmente gananciosos e cada vez menos taxados.
Se queremos cuidar da universalidade do Estado social é esta economia, cada vez menos civilizada, que temos de reformar, combatendo a austeridade recessiva e reforçando o controlo público do sistema financeiro, que se prepara para receber ajudas que podem bem chegar a 27 por cento do PIB nacional e que se prepara para reforçar a expansão, à custa de todos, em áreas como a saúde. Só um sistema financeiro com rédea curta, ao serviço do investimento produtivo, permitirá recriar economias mistas com prosperidade partilhada.
Só com transparência democrática, com mobilização e participação dos cidadãos, é possível distinguir a despesa pública improdutiva, que resulta da promiscuidade com grupos económicos privados, da despesa que corresponde ao investimento que o Estado social faz na provisão pública, ou seja, em todos nós. A verdadeira solidariedade, que também tem de ter escala europeia, passa por aqui. Estamos todos no mesmo barco.”
(João Rodrigues, Economista, investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, co-autor do blogue de economia política Ladrões de Bicicletas)

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