A
actualização do salário mínimo devia ser um dos temas fortes da esquerda durante
a campanha para as eleições para o Parlamento Europeu. O Bloco de Esquerda já
apresentou uma proposta de 545 euros. A opinião pública deve ser sensibilizada
para a falta de vontade da maioria de direita no sentido de subir o valor do
salário mínimo nacional que, mesmo assim, não será suficiente para tirar muita
gente da pobreza.
Na
1ª parte da sua crónica de hoje no Público, José Vítor Malheiros dá um
excelente contributo para provar a necessidade do aumento do salário legal mais
baixo existente em Portugal.
Portugal
é um dos países da União Europeia onde é mais elevada a proporção de
trabalhadores pobres. Pessoas com emprego, que se levantam todos os dias de
manhã para ir trabalhar, que recebem salário, mas cujo rendimento não é
suficiente para os arrancar e às suas famílias da pobreza. São meio milhão de
pessoas.
E,
além destes, há ainda mais um milhão e meio de pobres. Isto levando já em conta
as pensões de reforma e sobrevivência, os subsídios de doença, de desemprego e
outros apoios do Estado. Depois de todos receberem tudo aquilo a que têm
direito segundo a lei, há, mesmo assim, quase dois milhões de pobres.
Os
artigos que lemos nos jornais falam sempre de percentagens da população em
“risco de pobreza” mas trata-se de um eufemismo. É um eufemismo que a
terminologia oficial impôs, que as estatísticas usam e que os próprios
investigadores aceitaram, mas é um vergonhoso eufemismo. Estes dois milhões de
portugueses que não conseguem pagar transportes para ir trabalhar, que não
conseguem dar refeições decentes aos seus filhos, que não têm dinheiro para
comprar manuais escolares, que não têm dinheiro para pagar uma consulta num
hospital público, que não conseguem aquecer a casa no Inverno, que se escondem
à hora de almoço porque nem sequer podem levar para o local de trabalho uma
marmita com sopa, não correm “risco de pobreza”. São mesmo pobres. Porquê então
o “risco”? Porque é do interesse dos poderes suavizar a expressão para se
desresponsabilizarem da situação, para poderem negar a sua extensão e para
reduzir o impacto social das estatísticas.
A
existência de dois milhões de pobres no nosso país é uma afronta à nossa
dignidade, uma vergonha para todos. Mas dois milhões de pessoas “em risco” de
pobreza são uma estatística. Não significa nada. Afinal, não vivemos a vida
inteira em risco de alguma coisa? De ser atropelados por um autocarro, de ter
cancro, de que nos caia um tijolo na cabeça, de ser picados por uma abelha? E
não conseguimos atravessar a maior parte destes riscos incólumes? Estamos
habituados a falar de “risco” como de algo cuja probabilidade de acontecer é
mínima e é por isso que os governos gostam de falar de “risco de pobreza”.
Minimiza o problema.
É
verdade que há uma razão “técnica” para se falar de “risco de pobreza” em vez
de “pobreza”. É que não se pode garantir que quem tem um rendimento muito baixo
seja de facto pobre. É possível defender, em teoria, que uma pessoa pode ter um
rendimento baixíssimo ou mesmo nulo e não ser pobre. Pode viver de uma imensa
fortuna escondida no colchão, por exemplo. Mas nada disso apaga a tragédia
destes dois milhões de seres humanos, destes milhares e milhares de crianças
com fome, destas filas intermináveis de velhos doentes a quem a pobreza
maltrata com especial crueldade.
Há
quem pense (principalmente à direita) que a pobreza é inevitável e mesmo culpa
dos próprios pobres e que não podemos fazer nada a não ser remediar os seus
efeitos mais terríveis. Mas há também quem pense (principalmente à esquerda)
que a erradicação da pobreza é um dever de decência, que ninguém pode ser livre
enquanto não formos todos livres e que a pobreza é apenas outra forma de
escravidão, inaceitável como todas as explorações.
O
debate sobre o salário mínimo traz à tona estes dois pontos de vista e
coloca-os em confronto. Não existe nenhuma razão para não subir um salário
mínimo que não permite sequer escapar à pobreza. Os próprios patrões aceitaram
há três anos a actualização do salário mínimo e apenas a vontade do Governo,
fanaticamente empenhado no seu projecto de empobrecimento dos trabalhadores e
na sua transformação numa massa sem capacidade reivindicativa, travou esse
acordo. É verdade que a agenda neoliberal diz que a manutenção de salários
baixos permite combater o desemprego, mas não só essa doutrina está longe de
estar provada como o objectivo pretendido pela política salarial não pode ser
(para uma pessoa decente) o aumento do número de trabalhadores abaixo do limiar
de pobreza. O que pretendemos não é trabalho escravo para todos, mas trabalho
com dignidade para todos. É espantoso como 40 anos depois do 25 de Abril, um
século depois da semana de 40 horas, volta a ser necessário declarar estas
verdades evidentes.
A discussão sobre o aumento
do salário mínimo não é uma discussão económica – ainda que ele seja benéfico
para a economia. É uma questão de decência. E o aumento decente seria não para
os 500 euros mas aquele que permitisse repor o poder de compra ao nível do que
o primeiro salário mínimo instituiu.
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