Não
fosse a comunicação social, nacional e internacional, estar dominada por
monstruosos interesses económicos e financeiros a notícia da “existência de um
gigantesco esquema de evasão fiscal montado pelas autoridades fiscais do
Luxemburgo em benefício próprio e de centenas de grandes empresas
multinacionais” seria considerada, no mínimo a fraude do ano. No entanto, por
exemplo, entre nós surge a – para este efeito – miraculosa legionela que tem a
enorme vantagem de desviar as atenções das pessoas, servindo para esconder
outras notícias igualmente importantes para a nossa vida colectiva.
Não
fosse a atenção de alguns colunistas menos distraídos e menos tomados pelo
sistema e a colossal fraude que beneficiou centenas de multinacionais pela mão
do actual Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, já estaria no
rol dos esquecimentos, para grande gáudio de muita gente.
Felizmente
temos jornalistas como José Vitor Malheiros que tem a coragem de chamar os bois
pelos nomes num texto publicado hoje no Público em que, se fossemos sublinhar as
partes mais importantes, sublinhá-lo-íamos do princípio ao fim…
A
maior notícia dos últimos dias foi a revelação da existência de um gigantesco
esquema de evasão fiscal montado pelas autoridades fiscais do Luxemburgo em
benefício próprio e de centenas de grandes empresas multinacionais. Este
esquema permitiu poupar às empresas milhares de milhões de euros em impostos e
roubar a mesma quantidade de dinheiro ao erário público dos países onde estes
impostos deveriam ter sido pagos.
Que
o Luxemburgo é um paraíso fiscal é algo sobejamente conhecido. O que é
verdadeiramente espantoso neste esquema – revelado por um grupo de mais de
80 jornalistas do International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ)
– é a sua dimensão, a complexidade das transações realizadas e o grau de
organização e de rotina atingido pela operação.
Entre
as mais de 340 empresas cujas operações de evasão fiscal foram reveladas por
esta investigação, conta-se a IKEA, Pepsi, Federal Express, a consultora Accenture,
os laboratórios Abbott, a seguradora AIG, a Amazon, Blackstone, Deutsche Bank,
Heinz, Morgan Chase, Burberry, Procter & Gamble, Carlyle Group e a Abu
Dhabi Investment Authority, para mencionar apenas algumas das mais conhecidas.
As operações estão documentadas em 28.000 páginas de documentos oficiais a que
os jornalistas tiveram acesso.
Uma
das coisas mais relevantes nestas revelações é que elas envolvem um total de
transacções da ordem das centenas de milhares de milhões de dólares (leu bem),
realizadas entre 2002 e 2010, a que deveriam corresponder pagamentos de
impostos na ordem dos milhares de milhões de dólares. De facto, as empresas
chegavam a pagar taxas efectivas inferiores a um por cento sobre os lucros – um
valor que, apesar de irrisório, representava (representa) um prodigioso maná
para o Estado luxemburguês.
Outro
elemento que nos faz pensar é que todos estes casos descobertos pelo ICIJ dizem
respeito, exclusivamente, a clientes da empresa de consultoria financeira
PricewaterhouseCoopers. Como é provável que outras empresas de contabilidade
proporcionem este serviço luxemburguês aos seus clientes, percebemos que,
apesar de gigante, esta montanha representa apenas a ponta do icebergue e que o
total envolvido nestas evasões fiscais escapa à nossa imaginação.
Há
inúmeras coisas chocantes nesta história. Uma delas é o facto de se tratar de
um esquema sancionado pelo Estado luxemburguês e não de uma falcatrua
perpetrada apenas pelas empresas. O Governo luxemburguês, liderado pelo actual
presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, assinava com as empresas
acordos secretos para ganhar um euro por cada dez ou vinte euros que as
empresas deixavam de pagar nos seus países, comportando-se como uma espécie de
receptador de bens roubados e violando assim a mais elementar lealdade entre
Estados-membros da UE.
Estes
acordos secretos com as empresas não eram feitos por uns governantes corruptos,
com o fim de meter uns cobres ao bolso, e que agora vão ser atirados para a
cadeia. Estes acordos eram legais. Secretos, para não enfurecer os outros
Estados-membros, mas legais. Legais à luz da lei luxemburguesa e legais, juram
os dirigentes luxemburgueses, à luz das normas europeias. Porquê legais à luz
das normas da UE, que (em teoria) proíbe todas as ajudas a empresas que possam
enviesar a concorrência? Porque, respondem os luxemburgueses com ar seráfico,
“todas as empresas eram tratadas da mesma maneira”. Qualquer empresa que
quisesse fugir aos impostos encontrava no Luxemburgo uma mão amiga.
A
legalidade desta pouca-vergonha coloca-nos um problema. O problema é que nos
habituámos a definir a lei como o último refúgio da equidade e da justiça e a
considerar o primado da lei como uma característica essencial das democracias.
Mas o que acontece quando a lei apenas defende os mais fortes? O que acontece
quando a lei é não um instrumento para proteger os mais fracos dos abusos dos
mais fortes, como devia ser, mas um instrumento para proteger os abusos dos
mais fortes e para subjugar os mais fracos? O que acontece quando a lei é
iníqua, desumana?
Vivemos
no mundo um ataque aos direitos, à liberdade e à igualdade também no plano
legal. Não são apenas as leis (ou os acordos secretos) que permitem que os
ricos não paguem impostos. São as leis que reduzem os direitos dos mais fracos,
que reduzem os apoios sociais, que criminalizam os protestos, que impedem as
greves, que criminalizam os sem-abrigo.
As leis tornaram-se demasiado
complexas, a sua produção quase secreta e a sua alteração quase impossível. É
duvidoso que um milésimo da população da UE soubesse em que consistia o Tratado
Orçamental antes de ele ser assinado. Vivemos, na UE, numa camisa-de-forças
legal, composta por tratados que ninguém discutiu nem aprovou, e que poucas
pessoas sabem que consequências terão. Podemos alterá-los? Em teoria, sim. Mas
apenas em teoria. E se a lei se estivesse a tornar um instrumento de ditadura?
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