Com
a aproximação do Natal está aberta a época dos peditórios. Um dos maiores por
se estender a todo o país teve lugar nos últimos dias – terminou ontem – e é o
que é realizado pela Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC). Tal como acontece
todos os anos, a um ritmo crescente, daqui até 25 de Dezembro, vamos ser confrontados
a toda a hora por voluntários imbuídos pelas melhores intenções que nos
solicitam um donativo para uma causa nobre. Não tenhamos dúvida que todos os
peditórios se destinam a financiar causas nobres e, quem contribui fica ciente de
ter praticado uma boa acção. No entanto, na esmagadora maioria das situações,
estamos perante casos em que o Estado, por via de decisões dos governos em funções,
se exime a cumprir as suas obrigações legalmente estabelecidas. Não faz sentido
que, depois de o cidadão contribuinte ter de pagar impostos cada vez mais
elevados, venha a ser solicitado a pagar, por fora, uma série de funções da
alçada do Estado e, para as quais já concorreu financeiramente.
No
artigo de opinião que hoje assina no Público, José Vitor Malheiros analisa esta
problemática, tendo como ponto de partida o peditório da LPCC.
O peditório deste ano da Liga Portuguesa Contra o
Cancro terminou ontem e teve direito, como sempre, a uma extensa e benevolente
cobertura dos media, oscilando entre o encómio e a propaganda, louvando a
organização e os seus voluntários e incentivando os donativos.
Qual é o problema? O que pode ser mais nobre do que
contribuir para combater o cancro, fonte de tanto sofrimento de tantas pessoas?
De facto, os objectivos enunciados pela LPCC são
nobres e os voluntários que dedicam horas ou dias de trabalho ao peditório são
certamente abnegados e animados pelas melhores intenções. Mas vale a pena olhar
para além das intenções.
As pessoas que fazem donativos fazem-nos porque
esperam, como a LPCC diz, que este dinheiro vá servir para financiar programas
de educação para a saúde, acções de detecção precoce do cancro, apoio à
formação de técnicos de saúde e investigação em oncologia. Qual é o problema? O
problema é que, cada um destes objectivos constitui um dever do Estado, que o
Estado assume perante todos os cidadãos e que justifica os impostos que todos
pagamos precisamente para esses fins. Não vejo nenhuma justificação para que
uma organização privada faça uma recolha de fundos, junto de uma estreita
camada da população (são as classes mais modestas quem mais contribui para a
LPCC), para ajudar o Estado a levar a cabo tarefas que fazem parte da sua
tarefa central (educação, saúde, prevenção de doença, investigação) e menos
ainda me parece aceitável que essa recolha de fundos constitua uma campanha de
propaganda para a necessidade de a “sociedade civil” se envolver no
financiamento dessas actividades para além da sua contribuição fiscal. A
“sociedade civil” já se envolve no financiamento dessas actividades (melhor:
financia integralmente essas actividades) através dos impostos que paga e
apenas deve exigir que o Estado recolha esses impostos de forma eficaz e justa,
através de taxas progressivas, e que distribua os fundos segundo as prioridades
e necessidades.
Há quem argumente que “o Estado não pode fazer tudo e
precisa da ajuda dos cidadãos” e que, por isso, acções como o peditório da LPCC
são essenciais. É fácil ver que isso é falso.
O peditório da LPCC, por muito bem sucedido que seja,
constitui uma ínfima gota de água no oceano de necessidades e de despesas
realizadas pelo Estado neste domínio. Ele serve, de facto, quer isso seja ou
não do agrado da LPCC, apenas um objectivo político: a crescente desresponsabilização
do Estado nas tarefas essenciais da saúde.
É falso que peditórios como o da LPCC sejam essenciais
para financiar aquelas actividades. O Estado possui, aqui e agora, recursos
financeiros mais do que suficientes para cumprir todos os seus deveres, como
prova o dinheiro que se esbanja em privatizações, PPP, swaps, BNP, BES e
quejandos, onde pagamos sem pestanejar rios de dinheiro sem benefícios para o
Estado apenas porque os beneficiários são banqueiros e empresários e o PSD e
CDS consideram normal que os ricos fiquem cada vez mais ricos à custa do erário
público.
Mais: se acontecesse que a colecta fiscal não fosse
suficiente para financiar a educação e a investigação, seria fácil ao governo –
que já mostrou não ter escrúpulos na matéria – aumentar impostos para esse fim.
Quer isto dizer que não há lugar para organizações
como a LPCC ou que o voluntariado não é necessário porque o Estado se deve
ocupar de tudo? De forma nenhuma. Há um sem-número de actividades que o Estado
não só não possui meios para levar a cabo como não possui as melhores condições
para levar a cabo. Associações de doentes (como a LPCC também é, ainda que não
seja apenas isso) têm um papel essencial e insubstituível. A LPCC leva a cabo
inúmeras actividades de apoio a doentes e famílias (aconselhamento,
acompanhamento) que o Estado não poderia levar a cabo com a mesma qualidade,
mesmo que dispusesse de meios humanos e financeiros para o fazer. Mas o que uma
organização como a LPCC não deve fazer é contribuir para desresponsabilizar o
Estado relativamente àquilo que a própria LPCC sabe que ele tem de fazer. A
investigação é uma dessas áreas. A formação é outra. A detecção precoce é
outra. A LPCC não deve colaborar nestes domínios? Pode e deve, mas não
permitindo que o Estado fuja às suas responsabilidades. Não oferecendo-se para
financiar actividades que fazem parte do dever do Estado. Dar aos cidadãos a
ideia de que, “agora que o Estado não o pode fazer” temos de ser nós a dar
dinheiro para a prevenção do cancro e para a investigação oncológica é errado e
gravíssimo.
A
LPCC deve usar a sua capacidade de mobilização e o seu voluntariado para
denunciar as carências nestes domínios, para fazer pressão sobre o Estado para
que este conceda ao combate do cancro todos os meios necessários e não aceitar
a sua redução, dando a ideia de que, com uns peditórios, se podem colmatar as
falhas da irresponsabilização governamental.
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