Seja
qual for a posição ideológica de cada um de nós, é completamente impossível
ficarmos indiferentes ao “pesadelo que se abateu sobre” Portugal. As notícias sobre
esquemas ilegais de enriquecimento fácil e rápido sucedem-se a um ritmo
inimaginável, ao mesmo tempo que a miséria do povo cresce a olhos vistos, fruto
da política austeritária a que fomos submetidos. Até há poucos anos, nem ao
mais pessimista dos portugueses passaria pela cabeça sentir o país a saque,
ainda por cima, debaixo da vista dos governantes. De todos os quadrantes
ideológicos surgem os clamores, como o que aqui deixámos ontem, da parte de um
conhecido ex-autarca do PSD. Fica hoje aqui a transcrição da indignação de
outro ex-autarca, desta vez, do PS, o escritor de Coimbra, António Vilhena (*).
É
tão difícil acordar do pesadelo que se abateu sobre o nosso país! É preciso
abrir os olhos de mansinho para que a luz forte da decepção não nos tolde a
lucidez. E, mesmo assim, corremos o risco de nos cegarmos com a fria crueldade
dos casos recentes sobre os desvios à ética republicana. Em pouco tempo, quase
saído se um filme de Fellini, temos um director do SEF preso, Manuel Jarmela
Palos, a quem confiávamos a defesa das nossas fronteiras; o presidente do
Instituto dos Registos e do Notariado, António Figueiredo, acusado de
corrupção; o ministro da tutela, Miguel Macedo, obrigado a demitir-se; um
banqueiro; um banqueiro, caixa de pandora do regime, a ser detido um
ex-primeiro-ministro preso. Independentemente de se provarem as acusações, o
denominador comum é a corrupção. Ninguém fica bem na fotografia. Há uma moldura
triste e deprimente em todos estes casos, uma noite de breu que parece esconder
ainda muita coisa. A verdade é que o povo está na miséria e o actual poder político
tem emagrecido as famílias, precarizado o emprego e desperdiçado recursos,
obrigando milhares de jovens qualificados a emigrarem. Estamos entregues a um
bando sem pudor e sem ética, a uma gentinha que parece não olhar a meios para
enriquecer à custa de esquemas. O pior das democracias é a corrupção que mina a
confiança das instituições, descredibiliza os políticos e leva à perda da
confiança no Estado.
Como
é que se pode acreditar num governo que pratica a injustiça social? Recentemente,
anunciou a requalificação (palavra cheia de sinonímias ocultas) de mais 697
funcionários da Segurança Social. Conheço alguns dos escolhidos: são pessoas
que trabalham na instituição há mais de vinte anos, com família e que têm,
neste momento, apenas um vencimento. Os critérios para os escolhidos são duvidosos
e muito subjectivos. É repugnante quando assistimos ao descalabro da corrupção ao
mais alto nível na administração pública, casos acima referidos, e que se
queira justificar o equilíbrio das contas públicas à custa de pessoas que
ganham os mais baixos salários. Diz o governo, pomposamente, que se trata de “requalificar”.
A demagogia e a hipocrisia escondem-se atrás desta palavra. Há um cinismo
inaceitável desta gente que manda fazer mal aos outros com asas de anjo. Eu, se
fosse director distrital da Segurança Social, recusava-me a executar, em nome
da ética e da defesa dos princípios da igualdade, a “ordem de requalificação”; punha,
mesmo, o lugar à disposição. Esta é uma questão de honra e de dignidade que
ofende os mais elementares direitos daqueles que sempre deram o melhor das suas
vidas pelos outros. A gratidão do Estado a quem serviu a Segurança Social é a
precariedade e o desemprego. Haja vergonha! É nestas alturas que as palavras
deviam ter voz, para incomodarem o recato de Mota Soares, esse ministro
demagogo, que tem feito tudo para desmantelar a Segurança Social. Este governo não
tem escrúpulos e não respeita as pessoas. Vivemos um momento triste e, quiçá,
histórico. Triste, porque é evidente a vulnerabilidade ética de alguns que, no
topo da pirâmide, deviam defender o interesse público; histórico, porque há
alguma esperança que os acusados de corrupção respondam perante a justiça. Está
a tornar-se irrespirável viver neste “pântano” de promiscuidade.
(*) Diário
de Coimbra
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