A
nossa experiencia recente da aplicação radical do slogan “menos Estado, melhor
Estado” leva-nos a rejeitá-la liminarmente. Já percebemos perfeitamente a onde
podemos chegar e a procissão ainda vai no adro. A degradação do Estado, a questão
de fundo actual, é fomentada pelos ricos e poderosos que dela tiram o máximo
proveito. Os escândalos mais recentes que todos conhecemos como o do BES, as pornográficas
facilidades fiscais concedidas a mais de três centenas de multinacionais no
Luxemburgo e o dos vistos gold, são
apenas três exemplos da anulação do poder fiscalizador e regulador do Estado sobre
o poder financeiro.
A
muita gente séria causa perplexidade que, por exemplo, no caso BES ainda ninguém
tenha sido preso. No entanto, é um erro pensar-se que “leis iníquas e de
complexidade impenetrável” feitas para proteger os ricos e poderosos, alguma
vez possam servir para os castigar pelas suas práticas malévolas. Tanto o caso
BES como o dos vistos gold vão dar em nada como já tem acontecido em muitas
situações que envolvem gente com muito dinheiro. Quanto ao que se passou no
Luxemburgo, já está resolvido por natureza porque se trata de um roubo legal de
muitos milhares de milhões, levado a cabo por aquele país “às economias dos
países europeus” como afirma o Prof. Santana Castilho no excelente artigo de
opinião que assina hoje no Público e que reproduzimos a seguir – os sublinhados
são nossos.
Em
sentido figurado, um lodaçal é um ambiente de vida desregrada, um lugar
aviltante. Literalmente, o vocábulo expressa um lugar onde há muito lodo, um
atoleiro. O escândalo BES, com responsáveis evidentes e nenhum preso, o roubo
legal de milhares de milhões de dólares operado pelo Luxemburgo às economias
dos países europeus e a recente hecatombe que se abateu sobre o Governo e as
cúpulas da administração pública portuguesa mostram que é lá, num lodaçal, que
vivemos.
Estes
três escândalos, de tantos que tornam desesperada a vida cívica, têm uma
génese: a desagregação do Estado, com a consequente anulação do seu poder
fiscalizador e regulador sobre o mundo financeiro. Contrariamente ao discurso
das maiorias, nacional e europeia, o nosso problema não é o excesso de Estado,
mas o seu constante e progressivo aniquilamento. O nosso problema consiste em
encontrar meios políticos para devolver ao Estado instrumentos de fiscalização
e regulação que protejam o interesse geral.
O
meritório trabalho do International Consortium of Investigative Journalists
expôs uma dimensão magna de um roubo legal, que permitiu a cerca de 340
empresas internacionais, assistidas fiscalmente por uma só, de consultoria
financeira, a PricewaterhouseCoopers, pagarem apenas cerca de 1% de imposto
sobre os lucros. Moralmente nojento, quando pensamos na monstruosa carga
fiscal que, em nome da crise, asfixia os cidadãos. Repugnante, quando
esta degradante evasão fiscal, grosseiramente violadora da lealdade devida
entre Estados-membros da União Europeia, foi conduzida sob a responsabilidade
de Jean-Claude Juncker, que acaba de assumir a presidência da Comissão
Europeia.
Vivemos
num lodaçal de ataques aos direitos básicos dos cidadãos, perpetrados por
figurões que se dizem, sempre, de bem com a sua consciência de sociopatas, de
quebra constante da confiança no Estado, de desespero crescente quanto ao
futuro. Porque as leis, iníquas e de complexidade impenetrável, protegem os
fortes do mesmo passo que diminuem os apoios sociais e o direito dos mais
débeis.
Responsabilidade moral e política são coisas que
os dirigentes não conhecem.
Mas a falta de decoro é-lhes pródiga. Um episódio pouco divulgado mostra-o com
clareza. No dia 11 deste mês, numa audição na Comissão Parlamentar dos Negócios
Estrangeiros e Comunidades, a propósito da eleição de Portugal para o Conselho
dos Direitos Humanos das Nações Unidas e respondendo a considerações que vários
deputados fizeram sobre o impacto da crise na vida dos portugueses, o ministro Rui
Machete afirmou que os direitos fundamentais sociais dependem da economia e
podem ser restringidos em função dela. Ou seja, em matéria de direitos
fundamentais contam nada as aquisições civilizacionais, as convenções
internacionais que subscrevemos e a Constituição da República Portuguesa,
porque mandam o PIB e os credores internacionais. Rui Machete disse que na ONU
"Portugal pautará a sua actuação pelo objetivo da defesa da dignidade da
pessoa humana e do carácter individual, universal, indivisível, inalienável e
interdependente de todos os direitos humanos, sejam direitos civis, culturais,
económicos, políticos ou sociais". Rui Machete afirmou ir defender na
ONU os mesmos direitos sociais que, garantiu, podem ser suspensos cá dentro,
penalizando as pessoas em pobreza extrema, os idosos e as crianças. Forte
lógica, sólida moral.
Importa
relembrar, a propósito desta (mais uma) infeliz intervenção pública de Rui
Machete, que “os órgãos de soberania não podem, conjunta ou separadamente,
suspender o exercício dos direitos, liberdades e garantias, salvo em caso de
estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na
Constituição” (Artigo 19.º, n.º 1, da CRP).
E
voltamos ao lodaçal, que explica a abulia generalizada. Novo exemplo: sorrateiramente,
avança a municipalização da Educação, metáfora para consagrar nova
tragédia, qual seja entregar ao arbítrio das câmaras aderentes um domínio
estratégico, que jamais deveria sair da tutela central. Basta reler a história
da I República (a descentralização/municipalização da educação foi definida
pela primeira vez em decreto de 29 de Março de 1911) para perceber que não é de
descentralização municipalista, mas de autonomia, que as escolas e os
professores necessitam e que a substituição do monolitismo vigente por vários
caciquismos não resolverá um só problema e acrescentará muitos mais e graves.
A pequena dimensão do país, a
natureza dos compromissos, legais e éticos, assumidos pelo Estado face a um
vastíssimo universo de cidadãos e as economias de escala que as rotinas
informáticas permitem, justificam que a gestão da Educação permaneça
centralizada. Quanto aos aspectos que ganharão, e são muitos, se aproximarmos a
capacidade de decidir ao local onde as coisas acontecem, não deve o poder ser
entregue às câmaras, mas aos professores e às escolas. Justifica-o a
circunstância de estarmos a falar da gestão pedagógica. Porque quem sabe de
pedagogia são os professores.
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