Não estaremos longe da verdade
se afirmarmos que todos os governantes de hoje em Portugal a começar pelo Presidente
da República, passando pelo primeiro-ministro até ao último dos secretários de
estado, com todos os seus assessores, tinham lugar garantido em qualquer
governo do tempo da ditadura. É verdade que simulam muito bem um falso apego à
democracia, em especial por alturas de datas chave como o 25 de Abril ou o 1º
de Maio mas, analisados com atenção os seus comportamentos e depoimentos, ao longo
do tempo, facilmente se descobre que são democratas de fachada e, bem lá no
fundo, salazaristas de gema.
O exemplo mais acabado de um
salazarista/marcelista de gema é o do prof. Cavaco que abraçou a democracia a
contragosto por ter percebido cedo que o processo democrático iniciado com o 25
de Abril seria irreversível, pelo menos, no formato existente até àquela data. Ao
fim de décadas de acção política, o actual Presidente da República deixou um
rasto de atitudes e ideias que analisadas ao pormenor não deixam qualquer
dúvida sobre o seu fraco apego ao regime democrático.
Manuel Loff faz um excelente
exercício sobre este tema num texto que assina hoje no Público, partindo do
discurso do prof. Cavaco nas comemorações oficiais da instauração da
democracia, no passado dia 25 de Abril.
Sinceridade
ou simulação? Todas as vezes que Cavaco fala não consigo deixar de me fazer uma
pergunta que, com homens como ele, já deveria ter aprendido a não colocar. E o
problema não é só meu: uma infinidade de portugueses faz o mesmo. A coisa não é
de hoje mas vem dos tempos em que ele era PM, aqueles dez anos de arrivismo,
arrogância, de “populismo e clientelismo, sustentado pelo velho mito da direita
portuguesa sebastianista: o 'homem providencial'”, como lhe chamou Sousa
Franco, em 1993, num estudo sobre o período cavaquista.
Na
sessão oficial sobre o 40.º aniversário do 25 de Abril, em que se impediu que
os capitães de Abril falassem sob o pretexto de que, disse-o Cavaco, eles não
seriam “proprietários do 25 de abril” e de que o dia não “deve servir de arma
de arremesso na luta política”, o homem que contaminou metade da nossa
experiência democrática (como PM, como PR, como ministro das Finanças: 19
anos!) quis cumprir “o dever cívico de realizar a pedagogia democrática da
memória da ditadura perante as novas gerações” que “desconhecem o que é a
experiência de viver sob um regime autoritário, a que o 25 de abril pôs fim
graças à ação decidida de um punhado de militares corajosos.” Mas, pergunto,
corajosos como Salgueiro Maia, a quem Cavaco recusou conceder, em 1992, uma
pensão vitalícia por “serviços distintos prestados à Pátria”, ou corajosos como
Óscar Cardoso e os outros pides a quem, pelo contrário, a concedeu?
Cavaco
lembrou-nos que “no percurso pessoal de cada um, existirão certamente outros
dias que são lembrados com especial emoção. Mas nenhum outro evoca a nossa
memória coletiva como o dia 25 de abril de 1974.” A sua “especial emoção” terá
sido a da democracia, da liberdade e da paz conquistadas, a do “dia inicial
inteiro e limpo” de Sophia? Teria esperado Cavaco pela mesma “madrugada” por
que esperara Sophia e aqueles que lutaram contra a ditadura? É estranho porque,
revistos anos de discursos e a sua Autobiografia política de 2002, Cavaco falou sempre
do “pós-25 de Abril” como “desordem política, económica e social e ausência de
autoridade do Estado”, de “domínio comunista” (discurso de 20.10.1989). “Ao
ouvir na TV as declarações de alguns membros do Governo, do Conselho da Revolução
(…), voltava-me para a minha mulher e dizia: 'Esta gente não está boa da
cabeça, parece um país de loucos'” (Autobiografia política, vol. 1, pp. 38 e 41). É
isto que sempre lhe ouvimos. Coerente com o homem de quem, antes do 25 de
Abril, aos seus quase 35 anos, só se lhe conhece a declaração à PIDE, de 1967,
de, como era de esperar e era legítimo, “não exercer qualquer atividade
política”, mas que se considerava “integrado dentro do atual regime político”.
“Ao
fazer uma retrospetiva destas quatro décadas”, Cavaco conclui “que só nos
aproximámos dos ideais de abril quando soubemos unir-nos nas opções
essenciais.” Por exemplo, “quando conseguimos aprovar uma Constituição que é a
matriz fundadora do nosso regime democrático e do Estado social de direito.” A
mesma Constituição votada pelo PPD mas da qual Cavaco dizia que sujeitava
Portugal a uma “tutela coletivista imposta pelo golpe comunista e socialista do
11 de Março” (discurso de 19.5.1990), que pretenderia, dizia ele, a
“perpetuação de uma orientação marxista e socializante para a sociedade
portuguesa” e fora aprovada num “processo não respeitou a dignidade de Portugal
nem os nossos mais legítimos interesses” (artigo de Cavaco no JN, 25.4.1994)?
Aquela cujas regras, de que fala Cavaco, não são cumpridas pelo atual governo,
chumbadas que são, uma após outra, várias das reformas troiko-austeritárias,
pedaços inteiros de Orçamentos de Estado? É que Cavaco nem por isso cumpre a
própria Constituição e demite tal governo; que me lembre, no verão passado deixou
até que ele se recauchutasse depois de ter caído com o estrondo da demissão
“irrevogável” de Portas...
Nem
discuto aqui a legitimidade de, em democracia, ascender ao poder quem por ela
nunca nada fez e que mostrou horror permanente, militante, pela revolução que
lhe deu origem. Cavaco foi libérrimo de conquistar o poder sem gostar do 25 de
Abril e da Constituição, sem necessitar de ter sido militante antifascista! O
que é revoltante é esta contra-pedagogia da simulação. Ninguém o obriga, por
mais PR que seja, a elogiar uma coisa e a outra, da mesma forma que nunca amou
(como nunca usou, e bem!, o cravo vermelho). Só tem é de cumprir a
Constituição, nem que seja a versão descafeinada dela que, em 1989, fez
aprovar. O PR eleito por menos votos na história da democracia portuguesa, com
a mais baixa popularidade de sempre, escusa é de, depois de anos a fazer a
“pedagogia” de uma revolução “totalitária”, “comunista” e “soviética”, colar-se
memória do 25 de Abril no ano em que os portugueses que não o sentimos como
presidente da nossa República lhe gritamos a Grândola aos ouvidos.
(…)
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