Os
portugueses já se habituaram ao tipo de linguagem utilizada pelo Governo quando
nos prepara alguma malfeitoria. É o que se está a passar com aquilo que foi
designado por “Código de Ética do Ministério da Saúde” e que, em linguagem simples,
acaba por se traduzir numa mordaça a todos os profissionais ligados ao sector
público da saúde.
Depois
da estratégia usada para baixar ordenados e pensões de reforma, fazer
despedimentos, aumentar impostos e reduzir o Estado Social a uma caricatura,
pretende dar-se início a um processo de silenciamento das pessoas, só
comparável ao que se passa em regimes ditatoriais, com a agravante de, nestes
casos, conhecermos bem as regras do jogo e na actual situação ser tudo muito
indefinido. É mais um pilar da democracia que está a ser atacado. Se a coisa
pega no sector da saúde, outros se seguirão, não tenhamos dúvidas sobre isso.
De
qualquer maneira, as reacções a esta lei da rolha que Paulo Macedo pretende impor aos profissionais do SNS já começaram a fazer-se sentir e prevê-se que
sejam muito violentas.
Sobre
este tema, leia-se o que José Vitor Malheiros nos diz no Público de hoje.
Chamam-lhe
o novo Código de Ética do Ministério da Saúde. Ainda não entrou em vigor, mas
está em fase de consulta e o texto foi enviado a várias organizações, algumas
das quais já fizeram os seus comentários.
Entre
as disposições do documento de que a imprensa se fez eco consta o dever, para
todos os funcionários que trabalhem no Serviço Nacional de Saúde, de “guardar
absoluto sigilo e reserva” sobre qualquer informação que possa “afectar ou
colocar em causa” o interesse da organização.
Para
além desta disposição, determina-se que todos os “colaboradores e demais
agentes” dos organismos sob a tutela do Ministério da Saúde “devem abster-se de
emitir declarações públicas, por sua iniciativa ou mediante solicitação de
terceiros, nomeadamente quando possam pôr em causa a imagem da (nome do serviço
ou organismo), em especial fazendo uso dos meios de comunicação social”.
A
primeira curiosidade do documento é o facto de se chamar “Código de Ética”, mas
esse facto deve atribuir-se ao newspeak adoptado pelo Governo, que
chama “libertação” a despedimentos, “ajustamento” ao empobrecimento,
“oportunidade” ao desemprego, “privilégios” a pensões, etc. Um nome mais
adequado para o documento seria "Procedimentos de intimidação e controlo”,
mas como de cada vez que um membro do Governo usa uma designação honesta lhe cai
uma orelha, Paulo Macedo não quis correr o risco.
Repare-se
que esta proibição não se aplica apenas quando as eventuais declarações dos
colaboradores e demais agentes “possam pôr em causa a imagem” do organismo, mas
em todos os casos. O “nomeadamente” está lá para vincar que isso é proibido,
mas o resto também.
É
particularmente reveladora a expressão que considera uma agravante (“em
especial”) a difusão não autorizada de informações aos meios de comunicação
social.
À
primeira vista parece estranho que os media apareçam singularizados como
o inimigo principal (não faria mais sentido ser especialmente duro com a
partilha de informações sensíveis com o crime organizado? Com organizações
terroristas? Potências estrangeiras? Corretores de Bolsa? Fornecedores do
Estado?), mas a intenção é clara: o objectivo não é defender o Estado ou os
organismos do Ministério da Saúde de qualquer perigo particular, nem defender a
lisura de procedimentos ou garantir uma leal concorrência nos contratos
públicos ou outra qualquer razão admissível. O que se pretende é, simplesmente,
garantir a opacidade dos organismos do Serviço Nacional de Saúde e intimidar os
seus funcionários, de forma a impedir que o público seja informado do seu
funcionamento interno, mesmo quando ele apresente problemas graves, e
desresponsabilizar os dirigentes pelas suas decisões.
Um
verdadeiro código de ética deveria estabelecer que a principal responsabilidade
dos funcionários do SNS é para com os cidadãos e que é seu dever denunciar e
divulgar qualquer situação que, em consciência, lhes pareça atentatória da
qualidade técnica e humana que esses serviços devem garantir, de forma a
garantir os altos padrões de funcionamento que o público exige. É lamentável
que a lei da rolha e a intimidação a priori de qualquer eventual whistleblower
[chamemos-lhe tagarela] seja a
prioridade de Paulo Macedo.
Sobre
este ponto merece menção a atitude da Ordem dos Médicos, cujo Conselho Regional
do Sul decidiu apoiar os seus membros que falem publicamente sobre o que se
passa nos seus locais de trabalho e prometeu estar “ao lado de cada médico que
seja ameaçado por denunciar situações de grave prejuízo para os doentes no seu
serviço ou instituição”.
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