segunda-feira, 26 de maio de 2014

ENTREVISTA DO PROF. BOAVENTURA SOUSA SANTOS


Um dia a seguir às eleições para o Parlamento Europeu com os resultados que se conhecem, vem muito a propósito uma entrevista com o sociólogo Boaventura Sousa Santos, director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra concede uma interessante entrevista ao Público, da qual transcrevemos a parte que considerámos mais importante.
Para o sociólogo, dentro de não ganhámos nada com a integração na UE e ficámos pior porque perdemos os instrumentos que ajudariam uma retoma significativa da nossa economia e da nossa sociedade. Dentro de cinco anos poderemos ter uma sociedade irreconhecível.
Os sublinhados são nossos.
Três anos de austeridade, de cortes. Como será o país no pós-troika?
Portugal carrega a condição de semi-periférico no contexto europeu há vários séculos. O pós-troika vem mostrar que esta condição vai durar muito mais tempo e que o objectivo que se pretendeu com a integração na União Europeia - tentar ver se Portugal saía desse estatuto – não foi possível. E a tentativa foi tão mal gerida que ficámos pior. Não ganhámos nada em termos da nossa posição no sistema mundial, não ganhámos nada com a integração na União Europeia e ficámos pior, porque perdemos os instrumentos que poderiam, de alguma maneira, provocar uma retoma significativa da nossa economia e da nossa sociedade. Portugal não é ainda um país subdesenvolvido, mas tem mais características de subdesenvolvido do que antes. Tínhamos passado a ser um país de imigrantes, voltámos a ser um país de emigrantes. Tínhamos direitos sociais no domínio do trabalho, velhice, educação e saúde, que têm sido precarizados de modo a que Portugal se pareça, cada vez mais, com um país subdesenvolvido ou do terceiro mundo. Este conceito de “pós-troika” precisava de uma análise semântica. O pós-troika foi criado por uma certa ideia nacionalista que existe no Governo, que foi amplificada simbolicamente como retoma da soberania nacional. Assim, quem não quer o pós-troika? Todos querem. O que não estão a ver é que a troika vai ficar, deixou tudo planeado.
É um caminho sem retorno?
Não é um caminho sem retorno. Portugal, com esta dívida, continua a divergir. O legado do pós-troika é amarrar-nos à despromoção no sistema mundial através do pagamento da dívida. Vamos entrar num Verão quente que nos vai levar a um esvaziamento total da democracia, com o empobrecimento generalizado dos portugueses. A democracia, sobretudo a que temos, está muito associada aos direitos sociais. Vamos perdê-los.
O Estado Social tem os dias contados?
Eles querem destruí-lo. Eles apresentam como fatalidade o que é uma opção política. Hoje está absolutamente provado que o Estado gasta mais nas PPP [Parcerias Público-Privadas]. O Estado vai pagar mais para caucionar a privatização de serviços públicos, em que, no fundo, tem de manter válvulas de segurança. Vai privatizar a água, mas, se as pessoas não pagarem a conta, deixa morrer as pessoas à sede? Não deixa. Este sistema de transferir as políticas sociais para o mercado é ideológico, mas não há nada que diga que o Estado Social tem os dias contados. Não pela natureza das coisas, pelas opções políticas que estão a ser tomadas.
Faz sentido cortar apoios e, ao mesmo tempo, criar planos de emergência social?
O Estado aparece, dessa forma, como sendo subsidiário em relação às forças do mercado. Nessa altura, muitas vezes, vai ser obrigado a pagar mais. É a grande ironia. Como já está a pagar mais nas PPP, uma ruína para o próprio Estado. Era muito mais barato manter os serviços públicos. Como daqui a uns anos, diremos que era muito mais barato ter mantido o Serviço Nacional de Saúde, ter mantido uma educação pública, e ter mantido uma Segurança Social pública. Neste momento, no campo democrático, não estou a ver, de uma maneira muito corajosa, uma alternativa que, em meu entender, teria de ser protagonizada pelo PS, eventualmente em aliança com partidos à sua esquerda. A coragem do PS foi sempre contra a esquerda e continua a ser. Como os ventos agora vêm da direita, não estou a ver a coragem. Pelo contrário, não está a ter coragem nenhuma. Não estou a ver que o PS, por exemplo, vá defender o sistema público de pensões que é de sua autoria. O modelo de coesão social da Europa acabou. É um sonho vazio. A troika sai, não há Europa da coesão social. Há uma Europa de concorrência entre Estados, mais desenvolvidos e menos desenvolvidos.
Podemos falar de uma reorganização social depois da troika?
Se o modelo que tem estado em vigor se mantiver, daqui a cinco anos esta sociedade será irreconhecível, face aos primeiros 40 anos da democracia. Será uma sociedade onde os modelos de convivência e sociabilidade, e até de subjectividade, se vão alterar muito. Os mecanismos que levaram a classe média a consolidar-se estão a ser erodidos. Essa classe média está a empobrecer e há naturalmente aqueles que nunca chegaram à classe média e que hoje estão mais abandonados do que nunca. Neste momento, quando vemos que há famílias em que os pais estão desempregados, os filhos estão desempregados e numa altura em que os mecanismos da sociedade providência – subsídios de desemprego, rendimento mínimo de inserção – já não estão aí. Ficam sujeitas à caridade pública, à filantropia, aos bancos alimentares. Essa será a tal sociedade irreconhecível daqui a cinco anos. Muito mais gente dependente dos bancos alimentares, de terem o sistema dos Estados Unidos de vouchers para comprarem produtos alimentares. É bem possível que esta distopia venha a ocorrer no nosso país. O problema é saber se os portugueses vão tolerar isso.
Prevê uma convulsão social?
Protesto social haverá de uma ou de outra forma. Ninguém imaginaria que, por exemplo, os pensionistas fossem para a rua, organizassem uma associação que está hoje muito activa na defesa dos seus interesses. A sociedade vai encontrar mecanismos. O grande problema dos próximos cinco anos vai ser a carta de intenções. É esta trela curta a que Portugal está sujeito. A carta de intenções, o próprio euro e o tratado orçamental são as três coisas que impedem que Portugal dê uma volta criativa, como fez o Equador que pagou a sua dívida no mercado secundário ou a Argentina que rompeu com o Fundo Monetário Internacional. Estamos metidos numa armadilha que é estar dentro da Europa, mas, de facto, fora da Europa. É uma inversão total do que aconteceu depois de 1986. Portugal estava dentro para o melhor e pensava que o pior nem sequer existia. Agora está dentro para o pior e está fora para o melhor que fez. Estar na Europa, nestas condições, é uma prisão. Portugal continuará a fornecer a mão-de-obra e nada mais.
Assinou o Manifesto dos 74, cujos subscritores foram acusados pelo Governo de porem em causa o financiamento do país.
O manifestou mostrou que era possível uma alternativa e que quem a apresentava não eram os loucos de esquerda, não eram os utópicos. Eram pessoas com um profundo conhecimento da economia e da sociedade e, ainda por cima, com orientações políticas distintas. Basta ver que os dois principais signatários foram Bagão Félix e João Cravinho. Há muita gente de direita que não aceita este neoliberalismo de mercado.
Quais os maiores impactos desta crise?
É um retrocesso de 30 anos na construção do Estado Social que se pretende sem retorno. Isto não são cortes transitórios para resolver uma crise, são cortes permanentes. A reforma do Estado não é para resolver a crise. Inicialmente apresentaram tudo isto para resolver uma crise, mas mostraram a sua verdadeira face. O que eles têm é um programa, um paradigma ideológico de mudar o Estado Social para um Estado neoliberal ao serviço da acumulação capitalista. O que trouxe a troika? Uma defenestração, um insulto, um ataque total à nossa auto-estima. Abriu a caixa de Pandora que é o racismo da Europa do Norte em relação à Europa do Sul. Portugal foi sempre um país pequeno demais para a sua grandeza e grande demais para a sua pequenez. Tínhamos um império enorme e não tínhamos capacidade de o sustentar. É muito doloroso para um país que se espalhou por todos os continentes estar agora a ser tratado como um bando de indivíduos preguiçosos, que viveram acima das suas posses, à custa dos bancos alemães, quando foi exactamente o contrário – os bancos alemães é que viveram à nossa custa durante estes anos.
Preocupa-o a emigração?
Portugal está a perder população. E são os jovens e os mais bem preparados que saem. Qualquer retoma da economia, para não ser uma retoma que repita apenas o subdesenvolvimento, precisa dessa mão-de-obra qualificada. Foi para isso que a gente perdeu 20 anos a formar engenheiros técnicos de alta qualidade. O que aconteceu com a troika foi um tsunami psicológico, social, a desertificação do conhecimento português.

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