Um
dia a seguir às eleições para o Parlamento Europeu com os resultados que se
conhecem, vem muito a propósito uma entrevista com o sociólogo Boaventura Sousa
Santos, director do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra
concede uma interessante entrevista ao Público, da qual transcrevemos a parte
que considerámos mais importante.
Para
o sociólogo, dentro de não ganhámos nada com a integração na UE e ficámos pior
porque perdemos os instrumentos que ajudariam uma retoma significativa da nossa
economia e da nossa sociedade. Dentro de cinco anos poderemos ter uma sociedade
irreconhecível.
Os sublinhados são nossos.
Três
anos de austeridade, de cortes. Como será o país no pós-troika?
Portugal carrega a condição de
semi-periférico no contexto europeu há vários séculos. O pós-troika
vem mostrar que esta condição vai durar muito mais tempo e que o
objectivo que se pretendeu com a integração na União Europeia - tentar ver se
Portugal saía desse estatuto – não foi possível. E a tentativa foi tão mal
gerida que ficámos pior. Não ganhámos nada em termos da nossa posição no
sistema mundial, não ganhámos nada com a integração na União Europeia e ficámos
pior, porque perdemos os instrumentos que poderiam, de alguma maneira, provocar
uma retoma significativa da nossa economia e da nossa sociedade. Portugal não é
ainda um país subdesenvolvido, mas tem mais características de subdesenvolvido
do que antes. Tínhamos passado a ser um país de imigrantes, voltámos a ser um
país de emigrantes. Tínhamos direitos sociais no domínio do trabalho,
velhice, educação e saúde, que têm sido precarizados de modo a que Portugal se
pareça, cada vez mais, com um país subdesenvolvido ou do terceiro mundo.
Este conceito de “pós-troika” precisava de uma análise
semântica. O pós-troika foi criado por uma certa
ideia nacionalista que existe no Governo, que foi amplificada simbolicamente
como retoma da soberania nacional. Assim, quem não quer o pós-troika?
Todos querem. O que não estão a ver é que a troika vai ficar, deixou tudo
planeado.
É
um caminho sem retorno?
Não
é um caminho sem retorno. Portugal, com esta dívida, continua a divergir. O
legado do pós-troika é amarrar-nos à despromoção
no sistema mundial através do pagamento da dívida. Vamos entrar num Verão
quente que nos vai levar a um esvaziamento total da democracia, com o
empobrecimento generalizado dos portugueses. A democracia, sobretudo a que
temos, está muito associada aos direitos sociais. Vamos perdê-los.
O
Estado Social tem os dias contados?
Eles
querem destruí-lo. Eles apresentam como fatalidade o que é uma opção política.
Hoje está absolutamente provado que o Estado gasta mais nas PPP [Parcerias
Público-Privadas]. O Estado vai pagar mais para caucionar a privatização de
serviços públicos, em que, no fundo, tem de manter válvulas de segurança. Vai
privatizar a água, mas, se as pessoas não pagarem a conta, deixa morrer as
pessoas à sede? Não deixa. Este sistema de transferir as políticas sociais
para o mercado é ideológico, mas não há nada que diga que o Estado Social
tem os dias contados. Não pela natureza das coisas, pelas opções políticas que
estão a ser tomadas.
Faz
sentido cortar apoios e, ao mesmo tempo, criar planos de emergência social?
O
Estado aparece, dessa forma, como sendo subsidiário em relação às forças do
mercado. Nessa altura, muitas vezes, vai ser obrigado a pagar mais. É a grande
ironia. Como já está a pagar mais nas PPP, uma ruína para o próprio Estado. Era
muito mais barato manter os serviços públicos. Como daqui a uns anos, diremos
que era muito mais barato ter mantido o Serviço Nacional de Saúde, ter mantido
uma educação pública, e ter mantido uma Segurança Social pública. Neste
momento, no campo democrático, não estou a ver, de uma maneira muito corajosa,
uma alternativa que, em meu entender, teria de ser protagonizada pelo PS,
eventualmente em aliança com partidos à sua esquerda. A coragem do PS foi
sempre contra a esquerda e continua a ser. Como os ventos agora vêm da direita,
não estou a ver a coragem. Pelo contrário, não está a ter coragem nenhuma. Não
estou a ver que o PS, por exemplo, vá defender o sistema público de pensões que
é de sua autoria. O modelo de coesão social da Europa acabou. É um sonho vazio.
A troika sai,
não há Europa da coesão social. Há uma Europa de concorrência entre Estados,
mais desenvolvidos e menos desenvolvidos.
Podemos
falar de uma reorganização social depois da troika?
Se
o modelo que tem estado em vigor se mantiver, daqui a cinco anos esta sociedade
será irreconhecível, face aos primeiros 40 anos da democracia. Será uma
sociedade onde os modelos de convivência e sociabilidade, e até de
subjectividade, se vão alterar muito. Os mecanismos que levaram a classe média
a consolidar-se estão a ser erodidos. Essa classe média está a empobrecer
e há naturalmente aqueles que nunca chegaram à classe média e que hoje estão
mais abandonados do que nunca. Neste momento, quando vemos que há famílias em
que os pais estão desempregados, os filhos estão desempregados e numa altura em
que os mecanismos da sociedade providência – subsídios de desemprego,
rendimento mínimo de inserção – já não estão aí. Ficam sujeitas à caridade
pública, à filantropia, aos bancos alimentares. Essa será a tal sociedade
irreconhecível daqui a cinco anos. Muito mais gente dependente dos bancos
alimentares, de terem o sistema dos Estados Unidos de vouchers para
comprarem produtos alimentares. É bem possível que esta distopia venha a
ocorrer no nosso país. O problema é saber se os portugueses vão tolerar isso.
Prevê
uma convulsão social?
Protesto
social haverá de uma ou de outra forma. Ninguém imaginaria que, por exemplo, os
pensionistas fossem para a rua, organizassem uma associação que está hoje muito
activa na defesa dos seus interesses. A sociedade vai encontrar mecanismos. O
grande problema dos próximos cinco anos vai ser a carta de intenções. É esta
trela curta a que Portugal está sujeito. A carta de intenções, o próprio
euro e o tratado orçamental são as três coisas que impedem que Portugal dê uma
volta criativa, como fez o Equador que pagou a sua dívida no mercado
secundário ou a Argentina que rompeu com o Fundo Monetário Internacional.
Estamos metidos numa armadilha que é estar dentro da Europa, mas, de facto,
fora da Europa. É uma inversão total do que aconteceu depois de 1986. Portugal
estava dentro para o melhor e pensava que o pior nem sequer existia. Agora está
dentro para o pior e está fora para o melhor que fez. Estar na Europa, nestas
condições, é uma prisão. Portugal continuará a fornecer a mão-de-obra e nada
mais.
Assinou
o Manifesto dos 74, cujos subscritores foram acusados pelo Governo de porem em
causa o financiamento do país.
O manifestou mostrou que era possível uma
alternativa
e que quem a apresentava não eram os loucos de esquerda, não eram os utópicos.
Eram pessoas com um profundo conhecimento da economia e da sociedade e, ainda
por cima, com orientações políticas distintas. Basta ver que os dois principais
signatários foram Bagão Félix e João Cravinho. Há muita gente de direita que
não aceita este neoliberalismo de mercado.
Quais
os maiores impactos desta crise?
É
um retrocesso de 30 anos na construção do Estado Social que se pretende sem
retorno. Isto não são cortes transitórios para resolver uma crise, são cortes
permanentes. A reforma do Estado não é para resolver a crise. Inicialmente
apresentaram tudo isto para resolver uma crise, mas mostraram a sua verdadeira
face. O que eles têm é um programa, um paradigma ideológico de mudar o
Estado Social para um Estado neoliberal ao serviço da acumulação capitalista.
O que trouxe a troika? Uma defenestração, um
insulto, um ataque total à nossa auto-estima. Abriu a caixa de Pandora que é o
racismo da Europa do Norte em relação à Europa do Sul. Portugal foi sempre um
país pequeno demais para a sua grandeza e grande demais para a sua pequenez.
Tínhamos um império enorme e não tínhamos capacidade de o sustentar. É muito
doloroso para um país que se espalhou por todos os continentes estar agora a
ser tratado como um bando de indivíduos preguiçosos, que viveram acima das suas
posses, à custa dos bancos alemães, quando foi exactamente o contrário – os
bancos alemães é que viveram à nossa custa durante estes anos.
Preocupa-o
a emigração?
Portugal está a perder
população. E são os jovens e os mais bem preparados que saem. Qualquer retoma
da economia, para não ser uma retoma que repita apenas o subdesenvolvimento,
precisa dessa mão-de-obra qualificada. Foi para isso que a gente perdeu 20 anos
a formar engenheiros técnicos de alta qualidade. O que aconteceu com a troika foi
um tsunami psicológico, social, a desertificação do
conhecimento português.
Sem comentários:
Enviar um comentário