O
capital financeiro domina à escala planetária. Não há áreas em que não faça
sentir a sua influência, até as menos suspeitas. A doutrina neoliberal e o
pensamento único são os seus braços ideológicos e o exercício da democracia uma
espécie de força de bloqueio que, não poucas vezes é removida sob os mais
variados pretextos. Os portugueses que o digam, num momento em que uma
instituição tão respeitável como o Tribunal Constitucional sofre pressões brutais
para fazer tábua rasa da lei fundamental no sentido de permitir que o Governo
leve à prática decisões claramente ilegais e lesivas dos interesses da
esmagadora maioria do povo português.
Não
é por acaso que governos democraticamente eleitos temem as chantagens do
capital financeiro quando tomam decisões que colocam em causa o poder do
dinheiro. É o que estará a acontecer agora com o governo irlandês a propósito
de uma célebre carta que lhe foi dirigida por Trichet em 2010, obrigando o
Estado a intervir em 2010 com dinheiros públicos, para manter a solvabilidade
de dois bancos privados. Só que, neste momento é a opinião pública que exige a
divulgação do conteúdo da carta. Segue a história completa no seguinte texto
(*) que transcrevemos do Diário de Coimbra.
De
facto, os principais media europeus, absorvidos por comentadores e políticos
sistémicos, mostram a sua perplexidade face à explosão do que designam por
euroceticismo, uma praga maldita que atingiu o âmago do espaço comum que, desde
a sua criação, procurou promover o bem-estar social, níveis de vida e de
empregabilidade sustentáveis, além de garantias constitucionais inequívocas,
quanto aos direitos dos cidadãos.
Com
um parlamento sem viabilidade, com uma comissão presa numa teia de lóbis, um
conselho europeu sob hegemonia alemã – por curiosidade maléfica, recordo que se
comemoram, amanhã [hoje], os setenta anos da operação Neptuno, desembarque das
forças aliadas na Normandia – um BCE limitado nas suas competências, mas
intransigente na defesa de uma elite bancária e uma política exterior cegamente
enfeudada aos Estados Unidos, hoje utilizando um jogo perigoso de pressões
geopolíticas (mar meridional da China, Ucrânia) para manter inquestionável o
seu poder, em degradação visível, interna e externamente.
Mas,
chamar eurocéticos aos que recusam liminarmente “esta Europa”, chega a ser
infamante, só faltando acusá-los da relevância obtida pela extrema-direita nas
eleições, nomeadamente em França (FN/25%), Dinamarca (DF/26,7%), Reino Unido
(UKIP/27,5%) ou pela verdadeira hecatombe dos partidos tradicionais. Mal os
resultados eram divulgados, já a chanceler Merkel anunciava no quotidiano de
Leipzig que “a grande coligação do governo, em Berlim, irá apresentar uma
proposta consensual entre o seu partido e o SPD para a formação de uma nova
comissão europeia”, num ato do maior desprezo pelo parlamento, a quem compete a
aprovação de tal elenco, depois da reunião do Conselho Europeu de 27/8 de Junho
e a indicação formal do presidente, prevista para 14 de Julho.
Tudo
isto tenderia a fazer esquecer as intervenções da troica em alguns países
membros, mas não foi esta a postura dos irlandeses, que criaram, no mês
passado, uma comissão de inquérito sobre o comportamento do BCE, então sob a
presidência de Jean-Claude Trichet. O que se passou então, estávamos no segundo
semestre de 2010, foi o colapso de dois bancos irlandeses, com o governo a
determinar que a solução do problema era com os credores e não com o Estado.
Para
isso, o BCE dispõe de um programa de ajuda urgente de liquidez (ELA), que serve
para manter a solvabilidade dos bancos privados e o que aconteceu foi que, numa
carta dirigida ao governo irlandês, Trichet recusou formalmente tal apoio,
obrigando o Estado, a intervir, como em Portugal – os segredos do PEC IV – e a
endividar-se, criando um outro banco, agora o da dívida soberana.
O
problema é que os deputados irlandeses exigem que a missiva do ex-presidente do
BCE, datada de 19 de Novembro de 2010, seja publicada para se constatar “o
nível de chantagem a que se chegou” ou que se digne com a sua presença para ser
questionado pela referida comissão
Numa
entrevista recente (Newstalk), Trichet recusou liminarmente o pedido da
comissão, enquanto o atual presidente do BCE Mario Draghi, na resposta aos
deputados, considerou “não ser ainda oportuno divulgar o conteúdo da carta”.
Num
extenso artigo, no quotidiano financeiro (La Tribune, 20.5.14), o editor e
excelente jornalista Romanic Godin, questiona-se se o atual governo, fruto de
uma aliança entre conservadores e trabalhistas, irá ou não tomar a iniciativa
de divulgação da estratégica carta do BCE, como já o exige a opinião pública,
apesar das ameaças veladas.
Traduzindo
para português vernáculo, a questão é de saber se o governo irlandês (e outros)
“tem tomates” para enfrentar um poder financeiro supranacional, cuja asfixia
nos atinge e irá atingir durante decénios, a manterem-se os parâmetros de tal
poder.
Como
todos sabemos e como não tem mais nada que a preocupe, a comissão europeia
criou uma calibragem para grande parte dos produtos agrícolas, nomeadamente o
tomate, para poderem estar à venda nas grandes superfícies. Resta esperar que
tal decisão não venha a comprometer a arcaica expressão lusitana.
(*) João Marques, diplomado em Ciências da Comunicação,
Universidade de Bordéus
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