Muita da propaganda neoliberal é gato
escondido com rabo de fora. Só que é preciso descobrir-se a marosca o que,
muitas vezes não é fácil para o cidadão comum que não tem possibilidade de esmiuçar
as notícias que lhe entram pela casa adentro em doses brutais. Muitas vezes o
que fica é apenas a rama da notícia, sem qualquer aprofundamento da mesma por
parte do jornalista que a “despeja”. O espectador/ouvinte, em vez de
esclarecido, fica pior do que estava antes porque é enganado. O exemplo mais
recente desta manipulação informativa tem a ver com o chamado Dia da Libertação
dos impostos, designação inventada por uma organização de extrema-direita instalada
em Bruxelas, a New Direction-The Foundation for European Reform, propagandeadora
do que há de mais radical na agenda neoliberal europeia. No artigo que hoje
assina no Público, José Vitor Malheiros faz, com muita mestria, a desmontagem
dessa propaganda negra. É um texto de uma clareza linear, cuja leitura se
recomenda vivamente.
Tal
como já aconteceu em anos anteriores, vários órgãos de comunicação publicaram
na semana passada artigos e reportagens sobre o Dia da Libertação. Só que este
Dia da Libertação, apesar de ter caído também no dia 6 de Junho, não era a
comemoração do desembarque na Normandia em 1944, nem o dia da vitória sobre a
Alemanha nazi que se comemora em muitos países da Europa invadidos durante a
guerra, mas sim o Dia da Libertação de Impostos.
Nessas
peças jornalísticas, baseadas todas ou quase num despacho da agência Lusa
(ainda que muitos não o assinalassem, seguindo uma lamentável tradição
nacional), os seus autores explicavam que, até ao dia 6 de Junho, os
portugueses tinham trabalhado apenas para pagar impostos e que era só a partir
desse dia que estavam, finalmente, a trabalhar “para si”.
Era
difícil ouvir estas reportagens sem ficarmos indignados com a ganância deste
Estado que nos rouba o dinheiro arduamente ganho e esse era o tom dos
entrevistados de rua que vi na televisão. Todos lamentavam que tivessem de dar
tanto dinheiro ao Estado e que ficasse tão pouco para eles próprios, incluindo
uma mulher que se identificava como funcionária pública, mas que não tinha
parado para pensar que era daqueles impostos que vinha a totalidade do seu
salário.
As
reportagens que vi e os artigos que li dividiam-se entre um tom técnico e
factual ou um tom discretamente escandalizado e todos citavam “um relatório”,
“uma organização” ou “os autores do estudo”. Todos, porém, eram peças de pura
propaganda.
O
subtexto de todos eles era cristalino: o Estado é uma entidade parasita, que
rouba aos honestos trabalhadores mais de metade do que produzem para o enterrar
num buraco negro sem dar nada em troca e, se não fosse assim, todos estaríamos
muito melhor.
Não
vi nem li uma peça onde se referisse, mesmo que à margem, que é com esse
dinheiro que se pagam escolas e hospitais, estradas e pontes, salários de
enfermeiros e médicos, juízes e polícias, autarcas e bibliotecários, cientistas
e professores, a protecção civil e a defesa do património, o apoio aos
deficientes e o combate à pobreza, os seguros que nos garantem protecção na
doença e no desemprego. Não vi nem uma peça que lembrasse que, até dia 6 de
Junho, o que o nosso trabalho cobre, o que os nossos impostos de todo o ano
pagam são estas necessidades básicas, sem as quais seríamos, simplesmente, um
bando de animais.
É
tão relevante ou tão disparatado sublinhar que trabalhamos até dia 6 de Junho
para pagar impostos, como sublinhar que trabalhamos três meses por ano
para o nosso senhorio, mais dois meses para o Pingo Doce e o restante mês para
a EDP e para a Nos, sem que sobre um euro que seja “para nós”.
Todas
estas “peças jornalísticas” são peças de propaganda porque, insidiosamente,
insinuam que os impostos não são para “nós” mas para “eles”, que os impostos
servem interesses e grupos que não são os da comunidade. Mas, curiosamente,
estes estudos não referem que trabalhamos mais de um mês por ano para pagar
apenas juros (e, aí sim, sem termos absolutamente nada em troca), para além do
que temos de trabalhar para pagar a dívida em si.
Como
não referem que a organização autora do estudo, a New Direction-The Foundation
for European Reform, não é um think tank independente e idóneo, mas
apenas um lobby da extrema-direita económica
instalado em Bruxelas para impor a agenda neoliberal, que tem como santa
padroeira Margaret “There Is No Alternative” Thatcher.
É
evidente que é importante conhecer e avaliar a evolução ao longo dos anos da
colecta fiscal. E é importante fazer estudos comparativos com outros países.
Mas não para estabelecer como objectivo reduzir cegamente a “carga fiscal”. Não
se pode avaliar a bondade de uma política fiscal sem saber para quê e como são
usados os nossos impostos. Não é apenas o custo que conta: é também o benefício
que se recebe em troca.
E
é por isso que, entre os países que aceitam as maiores “cargas fiscais” da
Europa, vemos países com elevados níveis de bem-estar como a Bélgica, a França,
a Áustria ou a Alemanha.
A New Direction-The
Foundation for European Reform tem uma agenda e uma estratégia a que se costuma
dar o nome de “starve the beast” e que foi a agenda e a
estratégia de Thatcher e de Reagan. A “beast” é o Estado (Cavaco
chama-lhe “o monstro”, mas é a mesma coisa) que é apresentado como um sorvedouro
insaciável de dinheiros dos contribuintes. A estratégia é reduzir drasticamente
os impostos, convencendo os cidadãos que lhes estão a “meter dinheiro nos
bolsos” e, em seguida, reduzir a oferta de serviços públicos com o argumento de
que… não há dinheiro. Segue-se a privatização de serviços públicos que são
transformados em negócios para os amigos. Os pobres ficam mais pobres e morrem
pobres e os ricos ficam mais ricos e vivem felizes para sempre, comemorando o
Dia da Libertação dos Impostos e torcendo-se a rir com gosto.
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