“Pobreza
sempre existiu e sempre há-de existir” é uma afirmação conotada ideologicamente
com a direita.
Aliás,
a existência da pobreza é reconhecida tanto pela direita como pela esquerda só
que, enquanto esta luta pela sua erradicação, aquela aceita-a como uma
inevitabilidade. Este princípio é parte fundamental na definição de políticas de
qualquer governo. E não há meio-termo. Reduzir ou atenuar a pobreza e a exclusão
social é deixar tudo como está. Nesta matéria, um governo de esquerda não se
pode ficar pelas meias tintas e o único verbo que tem de usar é “erradicar”. E
erradicar não é para daqui a um século. É já!
Actualmente
o combate político está a fazer-se à volta de slogans com um sentido cada vez
mais vago, em que os candidatos fogem a compromissos bem definidos, como o
diabo da cruz.
O
texto que hoje assina no Público José Vitor Malheiros tem exactamente como pano
de fundo a indefinição revelada pelo candidato à liderança do PS, António Costa.
Ele pretende um PS que coloque em prática políticas de erradicação da pobreza e
redistribuição da riqueza ou essa ideia ficara para mais tarde ou seja, nunca? (os
sublinhados são nossos)
Há
cerca de um ano, no final de um debate organizado pela rede Economia com Futuro
sobre a situação do país, que reuniu duas ou três dezenas de economistas nas
instalações do ISEG, em Lisboa, Manuela Silva começou a ler as conclusões da
reunião. A dado momento, quando enumerava uma série de objectivos que tinham
emanado das intervenções e das discussões, lê "Redução da pobreza" e
estaca na leitura. Franze o sobrolho, olha o papel que tem na mão com surpresa
e diz "Isto aqui está mal. É preciso corrigir isto. Nós não queremos
reduzir a pobreza. Nós queremos ERRADICAR a pobreza."
Foi
um momento passageiro, de apenas uns segundos, nem sequer um incidente, uma
mera errata sem história numa lista de conclusões que talvez até tenha passado
despercebida a alguns dos presentes, mas penso que este episódio ficará gravado
na minha memória para sempre, pois ele representa o exemplo da exigência ética
e da generosidade com que Manuela Silva encara a sua actividade cidadã e
representa, ao mesmo tempo, o melhor que a esquerda tem para oferecer.
Este
episódio é para mim o perfeito simétrico da única conversa que tive até hoje
com Isabel Jonet, presidente do Banco Alimentar Contra a Fome, onde, em
resposta a algumas ideias que eu lhe expunha, ela me disse às tantas, um
tudo-nada irritada: "Mas acha que é possível acabar com a pobreza? Não é
possível! Sempre houve pobres e sempre haverá. A única coisa que podemos fazer
é atenuar um bocado essa pobreza, mais nada."
Se
perguntarmos a alguém se é a favor ou contra a pobreza, é praticamente certo
que essa pessoa dirá que é contra, seja qual for a sua ideologia, as suas
preferências partidárias, a sua instrução, a sua riqueza pessoal e a sua
posição social. Mas é fundamental em termos práticos, em termos políticos,
conhecer o grau dessa recusa. Há pessoas que acham que se deve tentar reduzir a
miséria extrema mas que, a partir daí, cabe às próprias pessoas mergulhadas na
pobreza sair dela pelos seus próprios meios, de forma a não criar entre os
assistidos fenómenos de "dependência" da ajuda. Há pessoas que acham
que o Estado deve ter políticas activas de combate à pobreza,
devotando-lhe alguns recursos, mas que fundamentalmente cabe ao desenvolvimento
económico, ao disseminar naturalmente pela sociedade a riqueza produzida, pôr
fim ao flagelo. E há pessoas que acham que o combate à pobreza, à exclusão e
à desigualdade deve ser um elemento central de todas as políticas, porque
consideram inaceitável viver numa sociedade onde uma criança passa fome e onde
o destino dessa criança é escrito no momento em que nasce, condenando-a à
pobreza, à ignorância e à doença apenas por ter nascido naquele bairro e
naquela família.
Há
pessoas que acham que devemos reduzir a pobreza e há outras que querem erradicar
a pobreza. E há pessoas que querem erradicar a pobreza nos próximos cem
anos e outras que querem erradicar a pobreza o mais depressa possível,
nos próximos anos, já, porque acham que não podemos dizer a uma mãe que a sua
filha vai ser pobre e que nunca vai cumprir os seus sonhos mas que a sua neta
talvez já não seja.
Há
pessoas que acham que devemos resgatar algumas pessoas da pobreza e há outras
pessoas que acham que não podemos deixar nem uma única pessoa para trás,
porque essa pessoa tem a mesma dignidade, os mesmos direitos e os mesmos sonhos
que os nossos filhos e os nossos pais. Somos todos contra a pobreza? Sim. Mas
há uns que são mais do que os outros. É uma questão de grau? É. É por isso que
"JÁ!" é uma palavra tão importante nos combates da esquerda. Os
direitos não podem esperar.
Não
levar o combate à pobreza até ao fim significa que aceitamos que milhares de
pessoas, milhares de crianças, não sejam o que podem ser, e isso é intolerável
porque é aceitar que os direitos só existem para quem tem dinheiro. É dizer que
o apartheid é aceitável.
Vem
isto a propósito da disputa da liderança do PS onde ambos os contendores se
reclamam da social-democracia (como aliás o próprio Passos Coelho y sus
muchachos), demonstrando que o rótulo, de tão usado por tanta gente de tão má
reputação, não significa hoje absolutamente nada. Mas os próprios objectivos
"concretos" definidos pelos políticos em geral e, no caso vertente,
pelos rivais do PS, significam muito pouco se não conhecermos o seu grau de
urgência. Ser social-democrata deveria ser regular os mercados, instituir um
sistema de economia mista, com forte intervenção do Estado e com um papel
central da contratação colectiva. Costa vai fazer isso? Já? Ser
social-democrata é pôr em prática políticas de erradicação da pobreza e de
redistribuição da riqueza. Costa vai fazer isso? Já?
O combate
político transformou-se num esgrimir de slogans vazios ("mudança") e
num enunciar prudente de objectivos vagos, para captar o máximo de apoiantes ao
centro. Mas o país precisa de definir objectivos ambiciosos de justiça social e
de os pôr em prática JÁ. Independentemente de eventuais alianças com o PS (uma
discussão armadilhada por enquanto) a esquerda à esquerda do PS tem de
conseguir consolidar o seu discurso e concretizar uma estratégia de governo
alternativa à austeridade que, pelo menos, obrigue o PS a sair do armário e a
dizer o que quer. Já sabemos que o PS não gosta da pobreza, mas quer reduzi-la
ou erradicá-la? E quer fazer isso hoje ou daqui a cem anos?
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