O Tribunal
Constitucional (TC) é um órgão de soberania que fiscaliza a conformidade dos
diplomas emanados pelo Governo com a Constituição da República. Essa fiscalização
é feita através da solicitação de órgãos especialmente autorizados pela lei. O TC não toma por sua livre iniciativa a
decisão a decisão de verificar a constitucionalidade das leis. Por outro lado,
o TC desempenha, por assim dizer, o papel de árbitro sendo que, todos os seus
elementos são eleitos pela Assembleia da República, por indicação dos dois
principais partidos políticos, PS e PSD. Têm uma inquestionável legitimidade
democrática e não se encontram em representação do partido A ou B. Os ataques
governamentais directos ou por interposta pessoa às decisões do TC constituem,
assim, ataques ao próprio sistema político. Como muito bem afirmava ontem no DN
o insuspeito Pedro Marques Lopes, “o Governo comporta-se como um verdadeiro delinquente institucional”.
Imagine-se um
jogo em que, a certa altura, uma das equipas, descontente com o resultado
pretende mudar o árbitro por si escolhido e as assim como as regras com que
aceitou jogar. Em bom português, batota é a definição mais simples para esta
atitude. É o que Passos Coelho e Portas pretendem mas, cuidado, porque no PS
também há quem seja capaz de fazer o mesmo. A propósito leia-se, então, a
opinião de Pedro Adão e Silva no Expresso de ontem.
Por uma vez estou totalmente de acordo com Passos
Coelho: “Como é que uma sociedade com transparência e maturidade democrática
pode conferir tamanhos poderes a alguém que não foi escrutinado
democraticamente?”
Há uma ironia trágica na declaração do primeiro-ministro.
Bem sei que foi a propósito dos juízes do Tribunal Constitucional, mas é
impossível ouvi-la e não pensar em imediato no próprio Passos Coelho. Que raio
de escrutínio este que permitiu que alguém tão impreparado, movido por uma
fúria ideológica assente em leituras atravessadas de contracapas de manuais de
introdução ao neoliberalismo e que fez da campanha eleitoral uma colossal
mentira se visse alcandorado ao cargo de primeiro-ministro no momento mais
difícil da nossa democracia? Como é que conferimos tamanhos poderes a Passos
Coelho, podemos bem questionar-nos.
Mas se há nesta declaração um efeito espelho, o seu
alcance é, contudo, mais vasto.
Por um lado, revela incompreensão em relação ao quadro
de governação nas democracias liberais. Não contente com o grau de concentração
de poder de que já beneficiou — uma ampla coligação assente num Governo, numa
maioria, num Presidente e ainda no apoio da troika —, Passos Coelho parece não
descansar enquanto não remover o derradeiro ponto de veto, essa excentricidade
dos regimes liberais que é a Constituição da República e os juízes que a
interpretam.
Por outro lado, ao sugerir uma alteração no
recrutamento dos juízes do Constitucional, o que Passos Coelho faz é recorrer a
um tipo de manobra sintomática do declínio do sistema partidário. Face a
dificuldades, os protagonistas usam o mesmo expediente: escudam-se em propostas
formais, para ocultar a sua incapacidade para enfrentar os problemas. Podia
tratar-se apenas de um sinal de fraqueza momentâneo, ou até de uma tentativa de
ganhar tempo. Mas temo bem que assim não seja.
Há, hoje, uma cultura dominante nas lideranças
partidárias, que torna, aliás, PSD e PS gémeos siameses. Fruto de uma
aprendizagem partilhada, em anos formativos em organizações de juventude,
chegados à idade adulta, os líderes utilizam os mesmos truques que os guiaram
ao sucesso. Repare-se na coincidência: enquanto Passos Coelho sugeria, sem
mais, uma alteração no recrutamento dos juízes do Constitucional, Seguro não
hesitava em propor uma revisão do sistema eleitoral, reduzindo o número de
deputados. Em ambos os casos, o propósito foi o mesmo: superar uma dificuldade
individual com uma reforma do sistema político. Ou seja, perante a incerteza,
recorrem aos temas prediletos.
Peritos
em virar assembleias de jotas, especialistas em reformas do sistema eleitoral e
doutorados em estatutos, os nossos dirigentes partidários não percebem uma
coisa. O que se habituaram a fazer à porta fechada decorre agora à vista
desarmada, com todos os portugueses a assistir. E, na verdade, os portugueses
já lhes tiraram a fotografia.
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