O
Ancien Régime é a designação original em língua francesa do sistema político e
social dominado pela aristocracia, que vigorou em França entre os séculos XVI e
XVIII. Trata-se principalmente de um regime centralizado e absolutista, em que
o poder era concentrado nas mãos do rei. Segundo a ideologia dominante o poder
emana directamente de Deus para o rei, personificando neste o Estado através da
conhecida concepção de l’état c’est moi (“O Estado sou eu”).
Passados
séculos, voltamos a viver uma situação idêntica mas em que o deus de onde emana
o poder, tem umas vestes diferentes e a prosaica designação de “dinheiro”. Nos
tempos actuais o soberano que se apoderou do “Estado e com ele se confunde” é o
capital financeiro como muito bem afirma Mário Vieira de Carvalho no excelente
artigo de opinião que assina hoje no Público.
A
avaliar pelas últimas eleições, os partidos do governo têm hoje a legitimidade
social e política que lhes é conferida por apenas cerca de dez por cento do
universo total dos eleitores recenseados. É muito pouco para quem já passou da
voz grossa à grosseria. Mas é o suficiente para quem, cada vez mais, demonstra
ter uma noção arcaica do Estado e do exercício do poder político.
Dir-se-ia
que as declarações delirantes de uma auto-intitulada “professora de direito”
sobre a nomeação de juízes do tribunal constitucional, ou de um ex-empresário
sobre a necessidade de calibrar o escrutínio dos mesmos, ou ainda a de um
eminente economista sobre a sua deles mentalidade de funcionários públicos
radicam na conceção de l’état c’est moi, segundo a qual o chefe do
executivo personificaria ou deveria personificar todos os poderes do Estado: o
legislativo, o executivo e o judicial. Não responderia apenas por um órgão de
soberania, antes seria “o” órgão de soberania. Não se encontraria vinculado a
uma Constituição, antes a ditaria. Não seria um mero chefe do executivo. Seria
o Soberano.
Se,
porém, mudarmos de ponto de vista – para uma observação de segunda ordem –,
então percebemos que, neste Portugal do século XXI, por via de uma das mais
extraordinárias piruetas da história, o soberano não passa, afinal, de um
lacaio. Arroga-se uma autoridade absoluta, mas enverga a libré. “Decreta”,
“proclama”, “declara” e “calibra”. Mas sempre de libré. Preside. De libré.
Discursa. De libré. Participa nos órgãos da União Europeia. De libré.
Representa o país. De libré.
Dá-se
ares de soberano, mas a libré assenta-lhe na perfeição. Cai-lhe bem nos gestos,
no registo grave da voz, no aprumo lento do passo, que fazem da aparente
arrogância a mais refinada escola de subserviência. Cai-lhe bem na elegância
com que se verga, arremedando poder de decisão. Na diligência com que sabe
estender a passadeira, parecendo caminhar sobre ela. Na persuasão a falar e na
determinação a agir – em nome de quem verdadeiramente manda. É a libré de chefe
de governo: o último grito do pronto a vestir, na União Europeia.
O
modelo até parece ter sido talhado em Lisboa, pois não há chefe de governo em
que ela assente tão bem. Outros a usam, é certo, mas fica-lhes curta nas
mangas. Talvez porque ainda não compreenderam o pleno sentido da “revolução”
neoconservadora em curso: a restauração duma ordem feudal, o retorno ao Ancien Régime
– a um regime anterior às noções de “soberania popular”, “constituição”,
“separação de poderes”, “democracia” e “direitos humanos”.
Não
se trata, evidentemente, de restaurar monarquias, embora as existentes não
estorvem. Nem de alterar a estrutura formal da governação. Nem, portanto, de
privar os povos de eleições, parlamentos, governos e constituições. Trata-se,
sim, apenas, de subordinar tudo isso à vontade do soberano. Eis o que se
pretende com as tão badaladas “reformas estruturais” e “austeridade”.
E
quem é ele – esse soberano a quem chefes de Estado e de governo devem vergar-se
como lacaios? Esse novo senhor absoluto que se apodera do Estado e com ele se
confunde? Que legisla, governa, interpreta a seu bel-prazer a constituição e as
leis, acaba com a independência dos tribunais, põe e dispõe de todo e qualquer
direito, suspende o próprio “Estado de Direito”, e degrada os cidadãos à
condição de meros súbditos?
É, obviamente, o capital
financeiro. É ele que hoje encarna, mudando apenas de roupagem, o modo de
governação do antigo regime: l’état c’est moi.
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