Portugal esteve encerrado esta segunda-feira para se continuar a realização de uma hiperlavagem ao cérebro dos seus habitantes, que
já tinha começado ontem. Independentemente do respeito que deve merecer um ser
humano que parte desta vida, ainda por cima um homem bom que deu o melhor de si
nas funções que desempenhou, querendo muito pouco em troca, nada justifica o
monumental espalhafato montado pela comunicação social, em especial a
televisiva. Dir-se-ia que estivemos perante o exemplo mais acabado da informação
transformada em espectáculo. Tudo servia para acrescentar mais alguma coisa,
como, por exemplo, comparar o defunto a Nelson Mandela. Nem mais!
Quem ficou muito agradecido foi o Governo
que se fez representar largamente, tecendo as loas do costume em ocasiões deste
tipo. Nem seria caso para menos porque durante uns dias os portugueses vão
esquecer-se do rol de austeridade que aí vem para acrescentar à austeridade que
já nos sufoca.
Para darmos uma ajuda ao desenjoo de um
dia com não notícias, trazemos aqui um texto de Clara Ferreira Alves que
transcrevemos da Revista do Expresso de sábado passado (4 Janeiro) onde a
jornalista conta o que se está a passar em Detroit, cidade americana que
declarou falência e, onde o juiz que a autorizou, permitiu que, por aquele
motivo, “a obrigação de pagar as pensões públicas deixava de ser intocável”.
Mas o melhor é ler-se o texto, na integra, e reflectirmos bem sobre ele.
Um juiz do Tribunal de
Falências dos Estados Unidos da América para o Distrito Leste de Michigan, um juiz
federal, autorizou formalmente a declaração de falência da cidade de Detroit, e
decretou que, neste caso, a obrigação de pagar as pensões públicas deixava de
ser intocável. As leis do Estado de Michigan e a Constituição proíbem que se
toque nas pensões. Um jurista perito em legislação municipal acha que a decisão
pode vir a mudar a intocabilidade das pensões, não apenas no Michigan como em
outras cidades com problemas em pagar pensões de funcionários públicos. Cidades
como Los Angeles, Chicago e Filadélfia. A decisão do juiz federal considera que
os benefícios das pensões são um direito contratual e não estão abrangidas pela
protecção especial num caso de falência municipal ao abrigo do Capítulo 9.
Detroit está na bancarrota. A
cidade foi a 4ª maior e é hoje a 18ª. Perdeu centenas de milhares de habitantes
(1,8 milhões para 700 mil). Os serviços públicos deixaram de funcionar, circula
apenas um terço das ambulâncias e a polícia consegue fechar 9% dos casos
reportados, apesar do aumento da criminalidade. Os bombeiros não têm mãos a
medir devido aos casos de fogo posto, estão mal equipados e sem meios. Um gestor
especial de falências, nomeado pelo Estado, Kevyn Orr, pretende iniciar já o
plano de recuperação da cidade com base na decisão, pagando apenas uma parte
dos 18 mil milhões em dívida da cidade, e restaurando serviços essenciais. Este
plano chama-se “Plano de Ajustamento”. A cidade vai vender património e
reinvestir o dinheiro nos serviços públicos.
Para as famílias com
rendimentos fixos, qualquer corte na pensão será devastador. Os sindicatos e os
gestores de fundos de pensões prometem luta judicial, recorrendo para um
tribunal superior, mas nenhum líder sindical tem dúvidas de que se a decisão vingar,
o resto da América atacará as pensões. “Os reformados e os pensionistas ficarão
sem apoios, sem comida, medicamentos, carro e serão despejados das casas e dos
lares”. Um bombeiro que recebe uma pensão de invalidez depois de ter ficado
gravemente incapacitado num incêndio, acha que a decisão, considerada ilegal e
amoral, é o “canário na mina”. Resposta oficial: “Não há dinheiro”. Numa manifestação
de protesto, liam-se nos cartazes as palavras Bank of America , um dos bancos
americanos resgatados pelo contribuinte americano. Neste caso, ninguém disse
que não havia dinheiro.
O declínio de Detroit tem
muitos fatores. A cidade sustentava-se praticamente de uma única indústria, a
automóvel (resgatada pelo contribuinte americano), e acumulou lideranças
municipais corruptas e incompetentes. Junte-se a isto a tensão racial, a
pobreza e a desigualdade. A dada altura, Detroit pedia emprestado para pagar
empréstimos anteriores, um círculo vicioso semelhante ao da dívida portuguesa e
dos juros. Com a diferença de que Detroit não pagará a dívida toda nem os juros.
E um dos últimos presidentes da Câmara, Kwame Kilpatrick, foi condenado a 28
anos de cadeia por crimes de extorsão, fraude e corrupção durante um mandato de
2001 a 2008. As falhas da liderança política foram, antes e depois dele, as
grandes responsáveis pela falência de Detroit. O mayor que lhe sucedeu demorou
pouco tempo no cargo e recusou recandidatar-se, e o mayor atual teve de ceder
poderes ao gestor especial de falências, Kevyn Orr.
A guerra prossegue agora nos
tribunais e as decisões finais das batalhas judiciais serão analisadas à lupa e
aplicadas ou não nas outra cidades, com ou sem bancarrota. Na vida da
democracia americana, nunca o princípio constitucional da inviolabilidade das pensões
tinha sido posto em causa, mas o próprio juiz que a decretou considera que há sempre
recurso para o tribunal superior. O que os sindicatos e fundos tencionam fazer.
Dado o estado de emergência da cidade, o juiz acha que o processo deve se
acelerado, posto em fast track, para que a cidade não fique muito tempo
paralisada pelos tribunais. A cidade e o “Plano de Ajustamento”.
Não custa
traçar paralelos entre o que está a acontecer na Europa, e em Portugal, com os
seus planos de austeridade, embora no caso de Detroit ninguém fale em
austeridade (seria irónico). O que importa reter é que o sistema dominante
arranjou uma maneira definitiva de dar cabo dos direitos adquiridos das pensões
públicas, um princípio sagrado desde a sua instituição. O que o futuro os
prepara é simples: a pensão é matéria aleatória. Há dinheiro mais que
suficiente na América para salvar Detroit, e muitos exemplos do
empreendedorismo da cidade já se notam por todo o lado, numa espécie de
renascimento urbano. A questão não é saber se há ou haverá dinheiro. A questão é
a eliminação do poder das constituições e das regras da justiça social em nome
da “emergência”. Lá como cá.
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