O texto seguinte é de grande qualidade como é apanágio de São José Almeida. Foi recolhido da edição em papel do “Público” de hoje (14/5/2011). É constituído, de forma resumida, pelo guião das intenções mais profundas contidas no “programa de intervenção na economia e na sociedade portuguesa elaborado pela troika presidida pela Comissão Europeia”. Trata-se de um texto muito claro, de fácil compreensão embora um pouco extenso. Vale a pena lê-lo e reflectir sobre ele nos tempos que passam.
A Contra-Reforma
“O programa de intervenção na economia e na sociedade portuguesa elaborado pela troika presidida pela Comissão Europeia é mais do que um programa destinado a recuperar a economia. É, sobretudo, um programa ideológico de inspiração neoliberal pura, que impõe administrativamente uma inversão das concepções de organização sócio-económica que vigoram em Portugal fruto do processo de democratização pós-25 de Abril.
A aposta da Comissão Europeia é cristalina. Estabelece um guião de actuação que, a ser seguido, consagra uma organização social e económica que assume como objectivo a satisfação dos interesses privados dos detentores dos meios económicos. Isto em detrimento de um sistema que funciona em nome do bem-estar de todos em igualdade de circunstâncias e que tem as pessoas como referência central.
Da leitura do documento original, diligentemente assinado pelos partidos do poder em Portugal, não se encontram soluções que se identifiquem com linhas de acção que fomentem o desenvolvimento da economia. Mas salta aos olhos o enunciado de pressupostos ideológicos neoliberais que assumem até um pendor radical e que têm sido defendidos por alguns há décadas, mas sucessivamente rejeitados pela maioria dos eleitores. Mesmo quando os partidos no poder desrespeitam os compromissos eleitorais e aplicaram soluções governativas de cedência ao neoliberalismo que antes não assumiram nas campanhas eleitorais.
O documento da troika surge assim como uma espécie de Missal do Novo Catecismo da Contra-Reforma, imposto por um novo Concílio de Trento que instalou a sua doutrina na Europa. E nele surge uma visão salvífica e redutora, que ignora a degradação social que provoca, e que se apresenta como um novo dogmatismo que promete trazer um paraíso de leite e mel ou ser uma espécie de novo sol na terra. Mas que representa a defesa e a reposição da linha de orientação política e ideológica que serve os interesses daqueles que se sentem postos em causa por um modelo social construído em Portugal com a democratização e que assenta em princípios tendencialmente igualitários e de justiça social contidos no Modelo Social Europeu.
A inevitabilidade das soluções apontadas no documento é fictícia. Embora seja apresentada como verdade absoluta pela propaganda do discurso político ampliado pela comunicação social. E é criadora de uma onda avassaladora que submerge os cidadãos com a expansão de um clima de medo e de insegurança, que pretende anular qualquer resistência ao não dar espaço à discussão de alternativas. E transformando em factos simples opiniões de um dos lados do debate político-ideológico.
Não sendo demonstrável a capacidade salvífica do documento da troika, a sua súbita e absoluta aceitação pelos partidos do poder e pelos círculos do poder em Portugal leva a questionar: será ele considerado tão bom por ser feito por senhores altos, loiros, de olhos azuis? Ou é por ser feito pelos donos do dinheiro que nos vai ser emprestado para pagarmos no futuro com juros e que se destina a pagar os juros e a dívida do dinheiro que já nos foi emprestado no passado? Será que contém alguma solução milagrosa para o desenvolvimento económico que tenha resultado na Grécia? Será que é melhor por ser feito por funcionários de um poder delegado e não de um poder político eleito?
A questão central é, como não podia deixar de ser, a organização e o estatuto do trabalho e a redistribuição de riqueza. Assim, é paradigmático o que é determinado no domínio da legislação laboral. Nomeadamente a imposição de uma forma de despedimento por inadequação ao posto de trabalho que mais não é do que uma forma de contornar legalmente o conceito constitucional de proibição de despedimento sem justa causa, que é assim anulado na prática.
Fica, deste modo, aberta a porta à arbitrariedade de despedimentos, que vai atingir de forma dramática os mais velhos, aparentemente menos adequados aos tempos modernos, mas de facto detentores de salários mais altos e de contratos de trabalho efectivo e sem termo que garantem direitos laborais. Com esta alteração será anulada a garantia do direito ao trabalho e reforçada a precarização, a qual é uma das linhas de força ideológica do documento, mesmo quando se introduz a necessidade de estender o direito ao subsídio de desemprego aos falsos recibos verdes.
A outra grande linha ideológica que o guião da troika apresenta é o da redistribuição da riqueza. É claro que a tendência é para tornar ainda mais desigual a distribuição da riqueza - que em Portugal já é uma das mais desiguais da União Europeia - e baixar o poder de compra e o nível de vida da generalidade dos portugueses. Esta redistribuição é mexida através da política fiscal e do ataque aos serviços públicos e às estruturas do Estado Social.
Aumenta as isenções e os benefícios fiscais às empresas, com medidas como a abertura à diminuição da parcela da taxa social única paga pelas empresas, com a finalidade de baixar os custos do trabalho. Medidas favoráveis à lógica empresarial e à sagração do lucro das empresas que são compensadas com o aumento dos impostos sobre o consumo, os quais recaem sobre todos os cidadãos.
Mas é nos cortes com a despesa nos serviços de Estado e na desconstrução do Estado-Providência que surge um dos grandes cavalos de batalha do Missal do Novo Catecismo desta Contra-Reforma e onde a sua radicalidade é gritante. Defende uma febre de privatizações e uma onda de fecho de serviços, com o consequente empurrar das pessoas para reformas antecipadas ou para os despedimentos negociados, que são facilitados pela abertura ao princípio da redução das indemnizações por despedimento.
O aumento do desemprego está, aliás, anunciado. Até porque é isso que permite quebrar a resistência das populações, pela insegurança da sobrevivência, pelo aumento do medo da pobreza. Ou seja, através do desemprego quebra-se a força reivindicativa dos sindicatos e das lutas reivindicativas dos trabalhadores. Só que há patamares e, quando se desce demais estes patamares, abre-se a porta para o caminho da tensão e da revolta social. E contra isso o Missal da troika não apresenta ainda milagre.” (Jornalista São José Almeida)
Luís Moleiro
A Contra-Reforma
“O programa de intervenção na economia e na sociedade portuguesa elaborado pela troika presidida pela Comissão Europeia é mais do que um programa destinado a recuperar a economia. É, sobretudo, um programa ideológico de inspiração neoliberal pura, que impõe administrativamente uma inversão das concepções de organização sócio-económica que vigoram em Portugal fruto do processo de democratização pós-25 de Abril.
A aposta da Comissão Europeia é cristalina. Estabelece um guião de actuação que, a ser seguido, consagra uma organização social e económica que assume como objectivo a satisfação dos interesses privados dos detentores dos meios económicos. Isto em detrimento de um sistema que funciona em nome do bem-estar de todos em igualdade de circunstâncias e que tem as pessoas como referência central.
Da leitura do documento original, diligentemente assinado pelos partidos do poder em Portugal, não se encontram soluções que se identifiquem com linhas de acção que fomentem o desenvolvimento da economia. Mas salta aos olhos o enunciado de pressupostos ideológicos neoliberais que assumem até um pendor radical e que têm sido defendidos por alguns há décadas, mas sucessivamente rejeitados pela maioria dos eleitores. Mesmo quando os partidos no poder desrespeitam os compromissos eleitorais e aplicaram soluções governativas de cedência ao neoliberalismo que antes não assumiram nas campanhas eleitorais.
O documento da troika surge assim como uma espécie de Missal do Novo Catecismo da Contra-Reforma, imposto por um novo Concílio de Trento que instalou a sua doutrina na Europa. E nele surge uma visão salvífica e redutora, que ignora a degradação social que provoca, e que se apresenta como um novo dogmatismo que promete trazer um paraíso de leite e mel ou ser uma espécie de novo sol na terra. Mas que representa a defesa e a reposição da linha de orientação política e ideológica que serve os interesses daqueles que se sentem postos em causa por um modelo social construído em Portugal com a democratização e que assenta em princípios tendencialmente igualitários e de justiça social contidos no Modelo Social Europeu.
A inevitabilidade das soluções apontadas no documento é fictícia. Embora seja apresentada como verdade absoluta pela propaganda do discurso político ampliado pela comunicação social. E é criadora de uma onda avassaladora que submerge os cidadãos com a expansão de um clima de medo e de insegurança, que pretende anular qualquer resistência ao não dar espaço à discussão de alternativas. E transformando em factos simples opiniões de um dos lados do debate político-ideológico.
Não sendo demonstrável a capacidade salvífica do documento da troika, a sua súbita e absoluta aceitação pelos partidos do poder e pelos círculos do poder em Portugal leva a questionar: será ele considerado tão bom por ser feito por senhores altos, loiros, de olhos azuis? Ou é por ser feito pelos donos do dinheiro que nos vai ser emprestado para pagarmos no futuro com juros e que se destina a pagar os juros e a dívida do dinheiro que já nos foi emprestado no passado? Será que contém alguma solução milagrosa para o desenvolvimento económico que tenha resultado na Grécia? Será que é melhor por ser feito por funcionários de um poder delegado e não de um poder político eleito?
A questão central é, como não podia deixar de ser, a organização e o estatuto do trabalho e a redistribuição de riqueza. Assim, é paradigmático o que é determinado no domínio da legislação laboral. Nomeadamente a imposição de uma forma de despedimento por inadequação ao posto de trabalho que mais não é do que uma forma de contornar legalmente o conceito constitucional de proibição de despedimento sem justa causa, que é assim anulado na prática.
Fica, deste modo, aberta a porta à arbitrariedade de despedimentos, que vai atingir de forma dramática os mais velhos, aparentemente menos adequados aos tempos modernos, mas de facto detentores de salários mais altos e de contratos de trabalho efectivo e sem termo que garantem direitos laborais. Com esta alteração será anulada a garantia do direito ao trabalho e reforçada a precarização, a qual é uma das linhas de força ideológica do documento, mesmo quando se introduz a necessidade de estender o direito ao subsídio de desemprego aos falsos recibos verdes.
A outra grande linha ideológica que o guião da troika apresenta é o da redistribuição da riqueza. É claro que a tendência é para tornar ainda mais desigual a distribuição da riqueza - que em Portugal já é uma das mais desiguais da União Europeia - e baixar o poder de compra e o nível de vida da generalidade dos portugueses. Esta redistribuição é mexida através da política fiscal e do ataque aos serviços públicos e às estruturas do Estado Social.
Aumenta as isenções e os benefícios fiscais às empresas, com medidas como a abertura à diminuição da parcela da taxa social única paga pelas empresas, com a finalidade de baixar os custos do trabalho. Medidas favoráveis à lógica empresarial e à sagração do lucro das empresas que são compensadas com o aumento dos impostos sobre o consumo, os quais recaem sobre todos os cidadãos.
Mas é nos cortes com a despesa nos serviços de Estado e na desconstrução do Estado-Providência que surge um dos grandes cavalos de batalha do Missal do Novo Catecismo desta Contra-Reforma e onde a sua radicalidade é gritante. Defende uma febre de privatizações e uma onda de fecho de serviços, com o consequente empurrar das pessoas para reformas antecipadas ou para os despedimentos negociados, que são facilitados pela abertura ao princípio da redução das indemnizações por despedimento.
O aumento do desemprego está, aliás, anunciado. Até porque é isso que permite quebrar a resistência das populações, pela insegurança da sobrevivência, pelo aumento do medo da pobreza. Ou seja, através do desemprego quebra-se a força reivindicativa dos sindicatos e das lutas reivindicativas dos trabalhadores. Só que há patamares e, quando se desce demais estes patamares, abre-se a porta para o caminho da tensão e da revolta social. E contra isso o Missal da troika não apresenta ainda milagre.” (Jornalista São José Almeida)
Luís Moleiro
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