Trazemos
hoje a este blog mais um texto que transcrevemos do Público, cujo autor (*) não
é seguramente um radical esquerdista mas um conhecedor profundo do que está a passar
no mundo laboral e dos direitos que estão a ser sucessivamente coarctados aos
trabalhadores a bem de uma suposta melhoria da competitividade. É muito
importante compreendermos o significado de expressões como “flexibilização do
mercado de trabalho” ou o prosseguimento de “mais reformas”, eufemismos que
significam o acentuar do empobrecimento de quem já tem poucos recursos.
Portugal
subiu 15 lugares no ranking mundial de competitividade de 2014-2015, conforme
relatório divulgado pelo Fórum Económico Mundial (FEM) em 3/9/2014. Está agora
no 36.º lugar. Em 2005, estava no 22.º.
Um
dos parâmetros (são 113) em que Portugal “melhorou” (três níveis) foi o da
“flexibilização do mercado de trabalho”. Contudo, diz o relatório que “devem
ser prosseguidas mais reformas”. É também a posição da Comissão Europeia (CE).
Para além da recente crítica, em Lisboa, de um seu funcionário ao recente
aumento (exíguo) do salário mínimo nacional, no relatório de avaliação final ao
programa da troika,
a CE defende mais medidas de “flexibilidade no funcionamento do mercado de
trabalho”. Igualmente, o FMI e a própria OCDE mantêm a pressão para que, em
Portugal, “prossigam as reformas do mercado de trabalho”.
Mais
recentemente (2/12/2014), na Comissão de Assuntos Económicos e Monetários do
Parlamento Europeu, a ministra das Finanças de Portugal defendeu um reforço da
“flexibilidade do mercado de trabalho”.
"Há
uma nova economia, composta por empresas que estão habituadas a fazer da
competição a sua principal alavanca, o seu principal factor crítico de
sucesso", garantiu o ministro da Economia (ME), Sr. António Pires de Lima,
quando, em 14/8/2014, comentava o crescimento de 0,6% da economia portuguesa no
segundo trimestre deste ano, face aos três meses anteriores.
Pelos
vistos, parece que ao FME, ao FMI, à CE, à OCDE e à própria ministra das
Finanças não basta a boa classificação de Portugal no tal ranking, nem, muito
menos, estas certezas do ministro da Economia quanto a haver uma “nova
economia”. É preciso – dizem – mais “flexibilidade do mercado de trabalho”,
eufemismo daquilo que mais (nem menos) não tem sido do que continuada
diminuição dos direitos dos trabalhadores, precarização e desvalorização do
trabalho.
Pelo
menos na última década, desde o Código de Trabalho (CT) de 2003 e passando pelo
CT de 2009 e pelas seis alterações de que este já foi objecto de 2011 a 2014,
tem sido crescente a desregulamentação laboral no sentido da eliminação ou
redução de direitos do e no trabalho e fragilização da segurança no emprego.
Tudo isto sempre apresentado como “flexibilização do mercado de trabalho”.
Quem
acompanha de perto o que se passa nos locais e situações de trabalho sabe que
esta progressiva desregulamentação dos direitos dos trabalhadores, associada a
um contexto de desemprego, tem fragilizado os trabalhadores nas relações e
locais de trabalho, induzindo-lhes o medo (ou, pelo menos, a inibição) de
reivindicarem e exercitarem (ou mesmo, tão só, de denunciarem a sua violação às
autoridades competentes e aos tribunais) os direitos mais directamente ligados
à prestação do trabalho (organização e duração dos tempos de trabalho,
salários, direitos associados à parentalidade, condições de segurança e saúde,
contribuições para a Segurança Social, etc.). E assim, por mais eficaz que seja
o respectivo sistema de controlo público (Autoridade para as Condições de
Trabalho), esta é a principal causa da crescente desregulação (incumprimento da
legislação do trabalho) nos locais de trabalho.
Sim,
talvez esteja a haver uma “nova economia”. Mas na qual muitas empresas,
“competindo” em concorrência desleal (por dumping social)
com entidades empregadoras cumpridoras e socialmente responsáveis, têm por
“principal alavanca” a “competitividade” assente na desregulação e, muito daí,
na precarização (incluindo a ilegal) e desvalorização do trabalho, na
degradação das condições de trabalho.
Até
que ponto, com estas metáforas desportivas e bélicas (“competição” e
“competitividade”), não se está a escamotear a negação objectiva do valor humano
social e económico de um conceito nuclear da sociedade e da economia: o
trabalho.
O
trabalho não é uma mera abstracção (jurídica, sociológica, filosófica,
económica, gestionária, etc.), já que, concretamente, consubstancia-se nas
pessoas que trabalham. Por isso, estão associados ao trabalho valores sociais
fundamentais, intrínsecos das pessoas como pessoas: vida, integridade física,
saúde, família, inserção e integração social, cidadania.
No
discurso político e empresarial, um dos argumentos mais tonitruados é o de que
é da “competitividade” das empresas que depende o emprego. Certo. Só que também
a “competitividade” das empresas não pode ser dissociada da qualidade do
trabalho, das condições de trabalho. Isto na medida em que a produtividade e a
qualidade dos bens ou serviços que as empresas (e a própria administração
pública) produzem ou prestam é muito disso que dependem, da qualidade do
trabalho das pessoas que, nos locais de trabalho, efectiva e concretamente,
produzem esses bens ou prestam esses serviços.
Uma
referência central das posições e acções da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) e do Conselho da Europa é o conceito de trabalho digno (decent work). Contudo, não estaremos a
caminhar para uma “nova economia” em que a “novidade” é a de a
“competitividade” empresarial deixar de ter por limites a dignidade de quem
trabalha?
“Competitividade”
empresarial sim, como base de crescimento económico e desenvolvimento social.
Mas assente num trabalho que, sem dúvida, garanta a produtividade, qualidade e
desenvolvimento organizacional das empresas. Mas também a justa remuneração e
segurança do emprego (suportes do viver pessoal e familiar), bem como a
qualificação e o desenvolvimento profissional, a prevenção dos riscos para a
vida e saúde das pessoas, a integração social, a dignidade.
Isto
para que, ainda que porventura subindo ainda mais o país nos rankings do FME,
nos relatórios do FMI e nas avaliações da CE, não continue a ser a recorrente
“flexibilização do mercado de trabalho”, como entendida (e praticada) apenas no
sentido da eliminação ou redução de direitos dos trabalhadores, um factor de
graves consequências humanas e sociais: pobreza (dos próprios trabalhadores e
da sua família), emigração, degradação da saúde pública, dificuldade de conjugação
da vida profissional com a vida familiar, quebra de natalidade.
“Poderá
a competição dirigir o planeta? Constituirá a competição o melhor instrumento
para enfrentar, a nível global, os graves e crescentes problemas ambientais,
demográficos, económicos e sociais?”
Estas
duas perguntas foram, já há 20 anos, assumidas e desenvolvidas por um grupo
internacional de dezanove pensadores do Direito, da Economia e da Política
(“Grupo de Lisboa”), numa obra talvez desconhecida para o FME, CE, FMI, OCDE e
até para a ministra das Finanças e para o ministro da Economia: Limites à Competição (1994, Fundação Calouste
Gulbenkian). Continuam mais que pertinentes.
A
“flexibilização do mercado de trabalho” sempre foi apresentada como o “alfa e o
ómega” do combate ao desemprego. E este, o desemprego, citando o
primeiro-ministro (27/11/2014, entrevista à RTP1), “é seguramente o maior drama
que nós temos”.
Sim,
mas isso mais justifica que se atente nas consequências humanas, sociais e
económicas da desvalorização do trabalho e da degradação das condições de
trabalho, incluindo as que se projectam negativamente na “empregabilidade” dos
trabalhadores e na “competitividade” das empresas (logo, na capacidade de
criarem emprego).
Daí
a pertinência de, neste domínio da dita “flexibilização do mercado de trabalho”
versus condições de trabalho, se
perguntar: que “limites à competição”?
(*) João Fraga de Oliveira, inspector do
trabalho (aposentado)
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