O
texto seguinte foi transcrito do Expresso Economia e é da autoria de Joseph Stiglitz,
Prémio Nobel da Economia e professor na Universidade de Columbia. Não estamos,
pois, na presença de nenhum radical esquerdista mas este artigo obtém, com
facilidade, a concordância da maioria das pessoas de esquerda. É óbvio que a
crise do ébola tem quase tudo a ver com o facto de a saúde se ter transformado,
a nível mundial, num negócio altamente lucrativo. Uma vez que “os pobres e os
países pobres” não têm meios para pagar uma vacina contra aquela doença, as
grandes empresas farmacêuticas não investem na sua criação. Logo que a doença ameaçou
os países ricos, eis que apareceram de imediato financiamentos para a
investigação…
A
crise do ébola lembra-nos, uma vez mais, o lado negativo da globalização. Nem
só as coisas boas – como os princípios da justiça social e da igualdade de
género – atravessam fronteiras mais facilmente do que nunca; também as
influências malignas, como problemas ambientais e doenças, o fazem.
A
crise também nos lembra a importância do Governo e da sociedade civil. Não
recorremos ao sector privado para controlar a propagação de uma doença como o
ébola. Em vez disso, viramo-nos para as instituições – os Centros de Controlo e
Prevenção de Doenças (CDC), nos Estados Unidos, para a Organização Mundial de
Saúde (OMS) e para os Médicos Sem Fronteiras, o notável grupo de médicos e
enfermeiros que arriscam as suas vidas para salvar as de outros nos países
pobres ao redor do mundo.
Até
mesmo os fanáticos de direita que querem desmantelar as instituições
governamentais recorrem a elas quando se deparam com uma crise semelhante à
provocada pelo ébola.
Os
governos podem não fazer um trabalho perfeito para enfrentarem essas crises,
mas uma das razões para que não tenham feito o que nós esperávamos é o facto de
termos subfinanciado as agências relevantes a nível nacional e global.
O
episódio ébola guarda lições adicionais. Uma das razões pela qual a doença se
espalhou tão rapidamente na Libéria e na Serra Leoa é que ambos são países
devastados pela guerra, onde uma grande parte da população está desnutrida e o
sistema de saúde foi devastado.
Além
disso, onde o sector privado desempenha um papel essencial – o desenvolvimento
das vacinas – há poucos incentivos para se reservarem recursos para doenças que
afligem os pobres ou os países pobres. Só quando os países avançados são ameaçados
é que há impulso suficiente para investir em vacinas no sentido de se enfrentar
doenças como o ébola.
Isto
não é tanto uma crítica ao sector privado; afinal de contas, as empresas farmacêuticas
não estão no negócio por terem bom coração e não há dinheiro na prevenção ou
cura das doenças dos pobres. Em vez disso, o que a crise do ébola questiona é a
nossa dependência em relação ao sector privado para fazermos aquilo que os
governos desempenham melhor. Na verdade, parece que com mais financiamento
público, uma vacina contra o ébola já poderia ter sido desenvolvida há anos.
Os
fracassos da América a este respeito têm atraído uma atenção especial – tanto que
alguns países africanos estão a tratar os visitantes dos EUA com precauções
especiais. Mas isso só faz eco d um problema mais fundamental: o sistema de
saúde maioritariamente privado da América está a falhar.
É
verdade, no topo da lista que os EUA têm alguns dos principais hospitais do
mundo, universidades de investigação e centros médicos avançados. Mas, embora
os EUA gastem mais per capita e como percentagem do seu PIB em cuidados médicos
do que qualquer outro país, os seus resultados de saúde são realmente
dececionantes.
A
esperança de vida dos cidadãos americanos do sexo masculino à nascença é a pior
dos 17 países com altos rendimentos – quase quatro anos a menos do que na Suíça,
Austrália e Japão. E é a segunda pior para os cidadãos do sexo feminino, mais
de cinco anos abaixo da esperança de vida do Japão.
Outras
métricas de saúde são igualmente dececionantes, com dados a indicar resultados
de saúde mais pobres para os americanos ao longo das suas vidas. E, durante
pelo menos três décadas, os problemas foram ficando piores.
Muitos
fatores contribuem para o desfasamento na saúde da América, com lições a tirar
que também são relevantes para outros países. Para começar, o acesso a assuntos
de medicina. Com os EUA entre os poucos países avançados que não reconhecem o
acesso como um direito humano básico, e mais dependente do que outros do sector
privado, não é surpresa para ninguém que muitos americanos não adquiram os
medicamentos de que necessitam. Embora a
lei Petient Protection and Affordable Care Act (Obamacare) tenha trazido melhorias,
a cobertura dos seguros de saúde continua fraca, com quase metade dos 50
estados americanos a recusar a expandir o Medicaid, o programa de financiamento
de cuidados de saúde para os pobres da América.
Além
disso, os EUA têm dos maiores índices de pobreza infantil entre os países
avançados (que foi especialmente verdadeiro antes de as políticas de
austeridade terem aumentado dramaticamente a pobreza em vários países europeus)
e a falta de nutrição e cuidados de saúde na infância tem efeitos ao longo da
vida.
A
desigualdade desmedida na América é, também, um factor crítico no desfasamento que
existe no seu sector da saúde, especialmente combinada com os factores acima
mencionados. Com mais pobreza, mais pobreza infantil, mais pessoas sem acesso a
cuidados de saúde, a habitações dignas e à educação, e mais pessoas a enfrentar
a insegurança alimentar (muitas vezes consumindo alimentos baratos que contribuem
para a obesidade), não surpreende que os resultados de saúde nos EUA sejam
maus.
Mas
os resultados de saúde também são piores nos EUA do que noutros lugares para
aqueles que têm rendimentos mais elevados e cobertura de seguro. Talvez isto
esteja, também, relacionado com uma desigualdade superior à dos outros países
avançados. A saúde, sabemos, está relacionada com o stress. Aqueles que se
esforçam por subir a escada do sucesso conhecem as consequências do fracasso. Nos
EUA, os degraus da escada estão mais distantes do que noutros lugares e a
distância entre a parte superior e a parte inferior é maior. Isso significa
mais ansiedade, que se traduz em saúde mais precária.
Ter boa saúde é uma bênção. Mas
como os países estruturam os seus sistemas de saúde – e as suas sociedades –
faz uma diferença enorme em termos de resultados. A América e o mundo pagam um
preço elevado pela excessiva dependência das forças de mercado e por uma atenção
insuficiente a valores mais amplos, incluindo a igualdade e a justiça social.
Sem comentários:
Enviar um comentário