Quem
chegasse a Portugal vindo de outro planeta e ouvisse apenas os membros do
Governo, nomeadamente o primeiro-ministro, ficaria com a ideia de que o país em
que vivemos é completamente diferente – para melhor – do que aquele que a
realidade mostra.
Quando
há um ano foi anunciada com grande pompa propagandística a conclusão do
programa de resgate, o mais natural seria que na mesma altura as instituições
envolvidas nele assim como o Governo procedessem à sua avaliação. Nada disto
aconteceu e todos suspeitamos porquê. É que os resultados previstos seriam
catastróficos em relação aos objectivos inicialmente traçados e aí não haveria
motivos para festas…
O
texto seguinte, que transcrevemos do Público de hoje, é um contributo de três cientistas
sociais (*) do Observatório sobre Crises e Alternativas do Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra para o “debate sobre as consequências do
(des)ajustamento provocado pelo memorando” da troika.
Em
Maio de 2014, o governo português anunciou a conclusão do programa de resgate.
Ao longo de três anos a sua aplicação foi objeto de apertada vigilância
trimestral. No entanto, uma vez concluído, nem o governo português, nem
qualquer das instituições da troika promoveram a sua avaliação.
O
Observatório sobre Crises e Alternativas não tem a pretensão de se substituir
às entidades oficiais na promoção da auditoria que seria necessária. Mesmo
assim não desiste de dar um contributo, e para isso, promove no dia 19 de maio,
nas instalações do CES-Lisboa, um debate sobre as consequências do
(des)ajustamento provocado pelo memorando nas relações laborais, nos
rendimentos, nas condições de trabalho, na proteção social, e nos sistema
educativo e de saúde.
A
avaliação do memorando deve partir do confronto entre os objetivos do resgate e
os resultados obtidos. Deve ter em conta não só os critérios do próprio
programa, mas também outras dimensões, omitidas ou subestimadas pela troika.
Vejamos o que poderia resultar de uma tal auditoria.
Os
objetivos e a lógica do memorando
O
programa de resgate baseava-se num diagnóstico que enfatizava a perda de
competitividade da economia portuguesa e a insustentabilidade dos défices
orçamentais. Tinha como objetivos: (a) estimular a competitividade e o
crescimento; (b) instilar confiança e assegurar a estabilidade orçamental; e
(c) salvaguardar a estabilidade financeira. A sua lógica era baseada nas ideias
de “desvalorização interna” e de “austeridade expansionista”, entretanto
votadas ao descrédito.
Tendo
em conta os objetivos estabelecidos, a avaliação enfatizaria provavelmente três
dimensões: (a) crescimento, emprego e competitividade; (b) défice orçamental e
evolução da dívida pública; (c) desalavancagem da banca e concessão de
crédito.
O
programa teve um efeito recessivo que ultrapassou, em muito, as expectativas
dos seus autores. De acordo com as previsões do FMI, a economia portuguesa
deveria ter sofrido dois anos de recessão, em 2011 e 2012, e retomaria o
crescimento em 2013. O PIB de 2014 situar-se-ia, em termos reais, apenas 0,4%
abaixo do seu nível de 2010. Na realidade, a recessão durou três anos e o PIB
real de 2014 ficou 5,5% abaixo do seu nível de 2010. O FMI previa que, em 2014,
o emprego se situasse 1,1% abaixo do nível de 2010. Na realidade, a quebra do
emprego foi de 7,1%. Em consequência da recessão, a balança corrente
reequilibrou-se mais rapidamente do que o esperado.
Da
recessão resultou, paradoxalmente, uma notória dificuldade em reduzir os
défices orçamentais e em reconduzir a dívida pública a uma trajetória
sustentável. Em nenhum dos anos do programa foram alcançadas as metas
inicialmente previstas para o défice orçamental. Em 2014, em vez do défice de
2,3% do PIB previsto, verificou-se um défice de 4,6%. A dívida pública, que
supostamente deveria começar a regredir e situar-se nesse ano em 115% do PIB,
atingiu de facto os 129%.
Apesar
da capitalização bancária realizada com fundos do programa de resgate, a desalavancagem da
banca foi acompanhada de uma acentuada compressão do crédito e de um crescimento
sem precedentes do crédito malparado, contribuindo para expor as fragilidades
das instituições. Em lugar da estabilização do setor financeiro, o país
assistiu perplexo, já em 2014, à falência e consequente resolução de um dos
maiores bancos privados portugueses — o BES.
Em
suma, uma avaliação independente dificilmente poderia deixar de concluir que o
programa se limitou a produzir um ajustamento do equilíbrio externo (balança
corrente) à custa de uma acentuação do desequilíbrio interno (emprego e nível
de atividade); que apenas conteve o crescimento da dívida externa, substituindo
dívida externa bancária por dívida externa pública.
As
consequências sociais e políticas
Se
nas dimensões que o programa valorizava as consequências foram estas, em
aspetos que o programa subestimava os seus resultados desastrosos podem
resumir-se em poucas palavras.
A
percentagem das pessoas em risco de pobreza subiu de 18,1%, em 2010, para
19,5%, em 2013. No caso das crianças passou de 22,3% para 25,6%. Em 2011, 20,9%
dos residentes em Portugal viviam em privação material. Em 2014, esta taxa
passou para 25,7%. Em resposta ao alastramento da pobreza, multiplicaram-se
programas assistenciais que, num quadro de recuo das políticas de
solidariedade, tendem a instituir-se, transformando emergência em normalidade.
O
esvaziamento da contratação coletiva, as alterações à legislação laboral, a
desvalorização salarial — particularmente severa no caso dos
trabalhadores jovens — a ofensiva contra os direitos depreciativamente
confundidos com privilégios proporcionaram uma importante transferência de
rendimento do trabalho para o capital e induziram na sociedade portuguesa uma
dinâmica de mobilidade descendente. Entre Abril de 2011 e o mesmo mês de 2014,
o salário médio passou de 962,9 para 948,8 euros.
A
“reforma” do Estado, sub-repticiamente realizada, delapidou capacidades da
Administração Pública e debilitou os sistemas públicos de saúde, educação,
proteção social e justiça. Esta reconfiguração do Estado, articulada com os
efeitos resultantes da perda de tecido produtivo disseminado, enfraqueceu a
coesão social e territorial, deteriorando a capacidade de recuperação futura da
economia e da sociedade portuguesas. A insistência nas ideias de
inevitabilidade e de ausência de alternativa alimentou desconfiança na política
e nos políticos e a descrença na democracia.
Nada
disto foi tido em conta pela troika nas suas avaliações do
programa. Muito menos foi considerada a destruição da esperança de toda uma
jovem geração. Se for possível medir a desesperança, os números da emigração
são os mais eloquentes: mais de cem mil emigrantes por ano de 2011 a 2013 —
números só comparáveis em Portugal com os da década de 1960.
(*)
Carvalho da Silva, José Castro Caldas e João Ramos de
Almeida
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