A
pretensa biografia de Passos Coelho que viu a luz do dia há poucas semanas e
que seguramente foi elaborada para fazer parte da campanha eleitoral para as
legislativas do próximo Outono, tem sido muito glosada na comunicação social e
não pelas melhores razões. O texto seguinte é da autoria de Rui Cardoso Martins
e transcrevemo-lo da Revista 2 do Público de hoje. O título, UMA BIOGRAFIA
DOENTE diz já alguma coisa do que vamos encontrar no desenvolvimento do artigo…
Hesitámos
em postar o texto neste blog, devido à sua extensão mas achamos que vale a pena
lê-lo. Quem quiser gastar um pouco do seu tempo verá que vale a pena...
Os historiadores e colunistas do PÚBLICO Vasco Pulido
Valente e José Pacheco Pereira publicaram textos importantes sobre o caso. A 10
de Maio, sob o título “Um diletante”, Pulido Valente defendeu que a
política sempre foi “um subgénero do teatro e da literatura”, começando pelo
exemplo de Churchill, e que hoje, com a omnipresença da televisão, “cada frase,
cada movimento, precisa de ser pesado e calculado com antecedência e minúcia.
Um elogio entusiástico à pessoa errada, revelações despropositadas numa
pretensa biografia podem arruinar — e frequentemente arruínam — a propaganda de
meses”. O “diletante” Passos Coelho não se prepara “para essa parte essencial
do seu trabalho”, reincide num “amadorismo destrutivo e patético”, no
“comentário néscio” e “numa biografia (Santo Deus!) que envergonha as pedras.
Não leu, ninguém lha mostrou?”
Um dia antes, a 9 de Maio, Pacheco Pereira confessava
como lhe foi penoso ler Somos o Que Escolhemos Ser, de Sofia Aureliano,
“dada a vacuidade geral e o terrível mau gosto que o perpassa de uma ponta à
outra. O mau gosto, aquilo a que se costuma chamar “possidónio”, chega a
incomodar porque, se há coisas que eu não quero saber sobre o primeiro-ministro
de Portugal, este ou qualquer outro, são exactamente muitas das que enchem o
‘lado humano’ do livro”. O político do PSD que mais se tem destacado no combate
à coligação no poder acrescenta: o livro “rompe com aquilo que sempre considerei
uma qualidade de Passos Coelho, a reserva sobre a sua vida privada” e “consegue
a proeza de, em vez de o puxar para cima, como os autores da encomenda
certamente pretendiam, puxá-lo para baixo, para uma trivialidade tão evidente
que não serve os objectivos hagiográficos da publicação”.
Tenho a certeza de que Pulido Valente e Pacheco
Pereira têm razão, mas não estou seguro de que a conclusão seja certa. É
verdade que o livro consegue ser aflitivo, a começar pela capa. Um homem a
apertar a gravata como um garrote (o dever, a dolorosa responsabilidade de
salvar a pátria?), mas satisfeito, normal. A olhar-nos de frente ou a ver-se ao
espelho antes de ir trabalhar.
Para ir direito ao assunto, acredito que o mau gosto é
intencional, tal como acredito que as gaffes nos improvisos — elogios ao
“exigente e metódico” Dias Loureiro, dizer que as vidas humanas devem ser
salvas mas “não a qualquer custo” — surgem cada vez mais de propósito para
compor o retrato de um homem que diz “sempre o que pensa”. Não serão gaffes,
só o parecem. Ele é aquele que não hesita em afrontar todas as opiniões e todos
os poderes (e todos os gostos...), incluindo denunciar e ridicularizar o
parceiro de coligação Paulo Portas — ao contar que a sua demissão “irrevogável”
foi apresentada de surpresa e por sms, a 3 de Julho de 2013 — e o seu
principal aliado, o Presidente Cavaco Silva, que terá prejudicado o país ao
deixar “o governo em banho-maria durante os vinte dias de estéril negociação
com o Partido Socialista” (pág. 208).
Passos Coelho pretende afirmar-se como uma espécie
nova de político providencial — é isso que o livro faz com tantas mistificações
do seu percurso de vida, tantas omissões do verdadeiro papel de aliados agora
inconvenientes (Miguel Relvas, Ângelo Correia, despachados numa frase).
Honrado, verdadeiro, transparente, apesar das “imperfeições”. Como a história
muito mal explicada do que fazia e ganhava na Tecnoforma e a quantidade de anos
em que foi trânsfuga da Segurança Social, de 1999 a 2004, os “anos em que este
cidadão foi mais imperfeito” (pág. 136).
Passos Coelho e os seus assessores estão a construir,
com tiros conscientes que parecem disparos ingénuos, um mito de príncipe
popularucho que vive como a classe média, as “pessoas como nós”, um messias de
subúrbio contra o elitismo da linha de Cascais “que têm amigos da Quinta da
Marinha e adoram velejar aos domingos” (pág. 178). Ao mesmo tempo, esconde, por
pudor, a dimensão verdadeira da sua cultura (leituras, ópera). Ele podia ter
sido médico, ele podia ter sido cantor. Mas é um homem que sacrificou o talento
e a própria família ao serviço dos portugueses. Passos Coelho, “o Imperfeito”.
Mais um salvador da pátria. O costume. Já cá fazia falta.
Assim, a aparente falta de estratégia comunicacional
transforma-se em virtude. Ele não tem tempo para pensar nisso, e é o primeiro a
sofrer com a incompreensão. Mas o seu coração apaixonado aguenta tudo: tem um
sangue-frio como nunca se viu. Mas a frieza afinal é calor. E a opacidade,
transparência.
Assim, também, o despudorado e angustiante mergulho na
sua vida privada, nas desgraças da família e, principalmente, na situação da
mulher, Laura Ferreira, que ocupa boa parte da biografia.
Quem lê o livro apanha com um vendaval de tuberculoses
(os avôs, mais os pais de Pedro), de cancros, crises renais, crianças que
nascem deficientes, sobrevivências improváveis, mortes reais e medos de morrer
amanhã. E, no entanto, o livro está sempre a dizer que Pedro Passos Coelho
protege sempre, mas sempre, a sua vida privada e que nunca a usará para
objectivos políticos. Um homem que diz “que se lixem as eleições” também
perceberá a expressão “é preciso ter lata”.
Pacheco Pereira pensa que o livro prejudica Passos
Coelho, que o “puxa para baixo”. A sua interpretação, limpa de sarcasmo ou
ironia, é certamente válida para muitas pessoas. Outras pensam que o livro se
autodestrói na manipulação grosseira e que só pode ser lido como sátira involuntária.
A deputada Isabel Moreira, do PS, apareceu na televisão (RTP Informação) a
publicitar o livro, pedindo a todos os portugueses que o leiam para que vejam
como Passos “é um mentiroso”. O exemplo que deu, entre risos, foi esta citação
do primeiro-ministro: “Sempre tive uma sede, uma vontade, quase aditiva, pelo
conhecimento.” Acrescento outra parecida: “Para Passos Coelho, a demonstração
do conhecimento não deve ser gratuita e o fim em si mesmo. Deve existir para
acrescentar valor. Já era assim que pensava há trinta anos.” Isto num livro que
junta citações de Passos, Shakespeare, Churchill, Saint-Exupéry, Mark Twain,
Aristófanes, o filósofo Sócrates e que cita erradamente, como lembra Pacheco
Pereira, a frase “em política, o que parece é”, como se fosse de Sá Carneiro,
quando pertence a Oliveira Salazar.
Mas vivemos num momento da política em que verdade e
mentira deixaram de ser opostas. Aliás, nem lutam uma contra a outra. Não faz
qualquer diferença. Só conta o efeito imediato, amanhã logo se vê. Mas a mentira
é insidiosa e fura a verdade como a água fura a pedra e deixa um buraco. É por
isso que é possível ler neste livro, de várias formas, a frase do sr. Cardoso,
dono do restaurante Comilão, “o Pedro diz sempre a verdade” (pág. 84), omitindo
a lista de promessas falsas que Passos Coelho fez para ganhar as eleições, a
começar pela garantia de que nunca iria cortar salários porque isso era “um
disparate”.
A autora, aliás, situa-se bem na introdução: a
biografia “não tem a pretensão de ser um retrato fiel do que foi a vida deste
homem nem do que é hoje a base do seu pensamento. Essa história só ele a poderá
contar” (pág. 9).
Mas, enquanto esperamos por esse dia, é preciso
admitir o efeito eleitoral do livro, escrito na sua forma simplista,
redundante, apaixonada, “possidónia”.
Passo a citar frases que podem ser lidas com
distanciamento, como propaganda mal feita, ou, pelo contrário, podem entrar,
pelo sentimentalismo e persuasão, numa grande parte do eleitorado, objectivo
último desta biografia.
Sobre a mãe de Passos Coelho, que sempre quis ter um
filho “loirinho de olhos azuis”:
“Bia acusa a
passagem do tempo e, apesar de ser um ano mais nova do que António [pai de
Pedro, médico], ‘a idade pesou-lhe de outra maneira’. Ainda assim, não deixa de
ter energia para se martirizar com o que sabe dizer-se, todos os dias, nos
jornais e na televisão, sobre o seu filho mais novo. Apesar de se isolar, como
que a esconder-se do tempo, acompanha diariamente o que se diz sobre Pedro e,
como qualquer mãe que vê ser atacado o filho, vive numa angústia imensa. Uma
das suas maiores alegrias seria ver o filho longe da pressão que o caminho que
escolheu seguir lhe impõe. Acaso o filho se afastasse da política, Bia não iria
ficar triste. Pelo contrário!” (pág. 35).
Sobre a juventude em Vila Real, na JSD:
“Quer fosse pela tenra idade ou pela clareza das
ideias, conseguia passar as suas mensagens. Pedro, não tendo essa consciência,
acredita que isso se deveria ao facto de se munir sempre de dois grandes
aliados: a verdade e a convicção. ‘Nunca usei a minha capacidade de intervenção
para atingir um objetivo preciso de uma forma artificial que não tivesse que
ver com a convicção que tinha quanto ao julgamento que fazia do que pensava do
que defendia. Sempre afirmei aquilo em que acreditava’” (pág. 52).
Sobre o talento “esplendoroso” de Pedro Passos Coelho
para a escrita:
“‘O Pedro escrevia e escreve esplendorosamente bem,
melhor do que qualquer um de nós. Era normal que, para além de tudo o resto, na
divisão de tarefas, lhe fosse dada a de elaboração de textos’. Recorda Luís
Monteiro” (pág. 68).
É na parte dos sentimentos íntimos e da história
familiar que o livro tem mais contradições. Para não usar outras palavras que
todos entendem sem demonstração gratuita de conhecimento: hipocrisia ou cinismo.
“Mas esconder o que sente, mesmo não sendo um ato
racional, não pode ser visto como uma desonestidade? Perante esta resposta,
Pedro vira o tabuleiro. Usar a informação sobre factos que aconteceram na sua
vida, que nada têm a ver com a política, com a tomada de decisão ou com o
exercício da sua função, isso sim seria incorreto.
‘Não gosto de dar a ideia de poder estar a manipular
ou a utilizar o sentimento das pessoas em favor de um determinado objectivo.’
Esta não é a postura mais comum, existe essa
consciência. O mais fácil era deixar que se fizesse uso da sua história. E
também seria o mais lógico. Não só porque o que vivemos é muito importante para
a construção do que somos, mas também porque o facto de não demonstrarmos o que
sentimos, fruto do que vivemos, pode ser interpretado como uma ausência de
sentimento. Se não contarmos nós a nossa verdade, alguém contará a história por
nós. Corremos o risco de que não seja a versão verdadeira.”
Mais adiante, Passos explica-se ainda melhor:
“Acho que existe um espaço próprio para a intimidade.
Devemos distinguir aquilo que somos da nossa relação pessoal, da nossa
intimidade, na nossa reserva, daquilo que é o nosso desempenho público. São
coisas distintas” (pág. 120).
Distintas? Pedro Tadeu, no Diário de Notícias
de 12 de Maio mostrava a sua surpresa e a da generalidade dos jornalistas por
terem sido enganados. Tinha-se pedido reserva noticiosa sobre o cancro de
Laura, a mulher de Passos Coelho. “Mas eis que num livro de propaganda
política, de elogio à personalidade de Pedro Passos Coelho, a privacidade
solicitada deixa de o ser e o cancro de Laura Ferreira é servido ao
sentimentalismo das massas.”
E é assim que Laura surge a confessar como está
apaixonada por Pedro porque ainda sente “borboletas na barriga” quando ele lhe
telefona de surpresa para jantarem fora. E ficamos a saber que tipo de cancro
lhe apareceu na perna, da prótese no joelho, das sessões de quimioterapia que
continuam, do cancro que “atira o ânimo para uma gruta escura”. Do medo de
morrer, misturado com o marido em acção:
“Laura, que sempre foi o porto seguro, o abrigo onde
Pedro encontrou o conforto para ser ele próprio, é agora quem carece de força
anímica.
A doença obrigou a uma total alteração de rotina do
casal. Os que antes estavam estabelecidos como ritmos de um dia-a-dia normal,
deixaram de existir. Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro de Portugal, tenta
agora gerir os dias entre a agenda de Estado e as obrigações de marido e de
pai. Conta com a ajuda da família, sobretudo da filha e da irmã de Laura, mas
na maior parte das vezes não dispensa o papel de pilar da família. Agora, é
Pedro quem tem de ser o porto seguro. ‘Eu tenho medo de deixar as minhas
filhas, a minha família, o meu marido. Tenho muito medo de morrer. O Pedro
consegue tranquilizar-me e dar-me uma força’” (pág. 145).
Mais tarde, Passos Coelho, o discípulo do falecido
António Borges, que defendia uma sociedade com uma elite de financeiros e
empreendedores apoiada numa extensa mão-de-obra barata, aparece como o exemplo
mais belo e genuíno da classe média, numa casa “nos arrabaldes”, aberta a
petiscos e fados de fim-de-semana:
“Um apartamento espaçoso onde Pedro e Laura conseguem
acolher todos os que amam e fazem questão de manter por perto no dia-a-dia. Uma
casa decorada sem a tirania da estética ou das novidades estilísticas, onde
cabem pedaços da história dos dois, das filhas de um, de outro e da de ambos. E
ainda há espaço para Peluche e Olívia, as cadelas da família que completam, com
o seu entusiasmo sonoro, o quadro mais genuíno da arte de bem receber. Ali,
nada é pretensioso nem preparado. A simplicidade da receção é tão autêntica
como a singeleza do espaço, onde o que se sente mais é vida. Ali vivem pessoas
de carne e osso, pessoas como nós. Foi fácil sentir-me entre amigos” (pág.
179).
Linguagem onde ecoam maneiras de escrever antigas, as
de um “acrisolado amor à Pátria”, algures entre as descrições oficiais de 1940
da “Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” — onde as “casas são de granito em
grandes silhares e perpianhos” e “o coveiro de Monsanto, primoroso tocador de
flauta, é uma das pessoas mais alegres da aldeia” — e as aventuras de Anita
(agora Martine) com o seu cachorrinho-salsicha, o Pantufa.
É num prédio de Massamá que habita um homem, um
primeiro-ministro que faz com as próprias mãos os papos-de-anjo no Natal e
estende a roupa e guarda sempre os domingos para o almoço de família. É um
governante doméstico.
E que vive com “desconcertante desapego ao poder” para
a desconcertante conclusão do livro (pág. 234):
“É exímio na protecção da sua vida privada e não
levanta o véu, nem quando a vê ser agredida por inverdades. Não reage às
falácias que se constroem sobre o que é, como vive ou que hábitos possui. Tem o
conforto de saber que só há um Pedro, e é o mesmo antes e depois de ser
primeiro-ministro. Esta manutenção de um ‘eu’ privado, que nem sempre foi
propósito ou estratégia de outros primeiros-ministros, é para Pedro Passos
Coelho condição incontornável. É aquela que lhe assegura que a sua identidade
não se esgota no ser político e lhe dá espaço para que se possa entregar, mais
genuinamente, aos outros papéis, não menos importantes: de pai, marido, filho,
irmão, homem.”
Esta
figura opaca que mistura família e política negando fazê-lo acaba de lançar
novas bases populares para a conquista das próximas eleições. Para a manutenção
no poder. Ingénua, mal feita, a biografia quer construir um novo mito
português.
Sem comentários:
Enviar um comentário