domingo, 24 de maio de 2015

“UMA BIOGRAFIA DOENTE”


A pretensa biografia de Passos Coelho que viu a luz do dia há poucas semanas e que seguramente foi elaborada para fazer parte da campanha eleitoral para as legislativas do próximo Outono, tem sido muito glosada na comunicação social e não pelas melhores razões. O texto seguinte é da autoria de Rui Cardoso Martins e transcrevemo-lo da Revista 2 do Público de hoje. O título, UMA BIOGRAFIA DOENTE diz já alguma coisa do que vamos encontrar no desenvolvimento do artigo…
Hesitámos em postar o texto neste blog, devido à sua extensão mas achamos que vale a pena lê-lo. Quem quiser gastar um pouco do seu tempo verá que vale a pena...
Os historiadores e colunistas do PÚBLICO Vasco Pulido Valente e José Pacheco Pereira publicaram textos importantes sobre o caso. A 10 de Maio, sob o título “Um diletante, Pulido Valente defendeu que a política sempre foi “um subgénero do teatro e da literatura”, começando pelo exemplo de Churchill, e que hoje, com a omnipresença da televisão, “cada frase, cada movimento, precisa de ser pesado e calculado com antecedência e minúcia. Um elogio entusiástico à pessoa errada, revelações despropositadas numa pretensa biografia podem arruinar — e frequentemente arruínam — a propaganda de meses”. O “diletante” Passos Coelho não se prepara “para essa parte essencial do seu trabalho”, reincide num “amadorismo destrutivo e patético”, no “comentário néscio” e “numa biografia (Santo Deus!) que envergonha as pedras. Não leu, ninguém lha mostrou?”
Um dia antes, a 9 de Maio, Pacheco Pereira confessava como lhe foi penoso ler Somos o Que Escolhemos Ser, de Sofia Aureliano, “dada a vacuidade geral e o terrível mau gosto que o perpassa de uma ponta à outra. O mau gosto, aquilo a que se costuma chamar “possidónio”, chega a incomodar porque, se há coisas que eu não quero saber sobre o primeiro-ministro de Portugal, este ou qualquer outro, são exactamente muitas das que enchem o ‘lado humano’ do livro”. O político do PSD que mais se tem destacado no combate à coligação no poder acrescenta: o livro “rompe com aquilo que sempre considerei uma qualidade de Passos Coelho, a reserva sobre a sua vida privada” e “consegue a proeza de, em vez de o puxar para cima, como os autores da encomenda certamente pretendiam, puxá-lo para baixo, para uma trivialidade tão evidente que não serve os objectivos hagiográficos da publicação”.
Tenho a certeza de que Pulido Valente e Pacheco Pereira têm razão, mas não estou seguro de que a conclusão seja certa. É verdade que o livro consegue ser aflitivo, a começar pela capa. Um homem a apertar a gravata como um garrote (o dever, a dolorosa responsabilidade de salvar a pátria?), mas satisfeito, normal. A olhar-nos de frente ou a ver-se ao espelho antes de ir trabalhar.
Para ir direito ao assunto, acredito que o mau gosto é intencional, tal como acredito que as gaffes nos improvisos — elogios ao “exigente e metódico” Dias Loureiro, dizer que as vidas humanas devem ser salvas mas “não a qualquer custo” — surgem cada vez mais de propósito para compor o retrato de um homem que diz “sempre o que pensa”. Não serão gaffes, só o parecem. Ele é aquele que não hesita em afrontar todas as opiniões e todos os poderes (e todos os gostos...), incluindo denunciar e ridicularizar o parceiro de coligação Paulo Portas — ao contar que a sua demissão “irrevogável” foi apresentada de surpresa e por sms, a 3 de Julho de 2013 — e o seu principal aliado, o Presidente Cavaco Silva, que terá prejudicado o país ao deixar “o governo em banho-maria durante os vinte dias de estéril negociação com o Partido Socialista” (pág. 208).
Passos Coelho pretende afirmar-se como uma espécie nova de político providencial — é isso que o livro faz com tantas mistificações do seu percurso de vida, tantas omissões do verdadeiro papel de aliados agora inconvenientes (Miguel Relvas, Ângelo Correia, despachados numa frase). Honrado, verdadeiro, transparente, apesar das “imperfeições”. Como a história muito mal explicada do que fazia e ganhava na Tecnoforma e a quantidade de anos em que foi trânsfuga da Segurança Social, de 1999 a 2004, os “anos em que este cidadão foi mais imperfeito” (pág. 136).
Passos Coelho e os seus assessores estão a construir, com tiros conscientes que parecem disparos ingénuos, um mito de príncipe popularucho que vive como a classe média, as “pessoas como nós”, um messias de subúrbio contra o elitismo da linha de Cascais “que têm amigos da Quinta da Marinha e adoram velejar aos domingos” (pág. 178). Ao mesmo tempo, esconde, por pudor, a dimensão verdadeira da sua cultura (leituras, ópera). Ele podia ter sido médico, ele podia ter sido cantor. Mas é um homem que sacrificou o talento e a própria família ao serviço dos portugueses. Passos Coelho, “o Imperfeito”. Mais um salvador da pátria. O costume. Já cá fazia falta.
Assim, a aparente falta de estratégia comunicacional transforma-se em virtude. Ele não tem tempo para pensar nisso, e é o primeiro a sofrer com a incompreensão. Mas o seu coração apaixonado aguenta tudo: tem um sangue-frio como nunca se viu. Mas a frieza afinal é calor. E a opacidade, transparência.
Assim, também, o despudorado e angustiante mergulho na sua vida privada, nas desgraças da família e, principalmente, na situação da mulher, Laura Ferreira, que ocupa boa parte da biografia.
Quem lê o livro apanha com um vendaval de tuberculoses (os avôs, mais os pais de Pedro), de cancros, crises renais, crianças que nascem deficientes, sobrevivências improváveis, mortes reais e medos de morrer amanhã. E, no entanto, o livro está sempre a dizer que Pedro Passos Coelho protege sempre, mas sempre, a sua vida privada e que nunca a usará para objectivos políticos. Um homem que diz “que se lixem as eleições” também perceberá a expressão “é preciso ter lata”.
Pacheco Pereira pensa que o livro prejudica Passos Coelho, que o “puxa para baixo”. A sua interpretação, limpa de sarcasmo ou ironia, é certamente válida para muitas pessoas. Outras pensam que o livro se autodestrói na manipulação grosseira e que só pode ser lido como sátira involuntária. A deputada Isabel Moreira, do PS, apareceu na televisão (RTP Informação) a publicitar o livro, pedindo a todos os portugueses que o leiam para que vejam como Passos “é um mentiroso”. O exemplo que deu, entre risos, foi esta citação do primeiro-ministro: “Sempre tive uma sede, uma vontade, quase aditiva, pelo conhecimento.” Acrescento outra parecida: “Para Passos Coelho, a demonstração do conhecimento não deve ser gratuita e o fim em si mesmo. Deve existir para acrescentar valor. Já era assim que pensava há trinta anos.” Isto num livro que junta citações de Passos, Shakespeare, Churchill, Saint-Exupéry, Mark Twain, Aristófanes, o filósofo Sócrates e que cita erradamente, como lembra Pacheco Pereira, a frase “em política, o que parece é”, como se fosse de Sá Carneiro, quando pertence a Oliveira Salazar.
Mas vivemos num momento da política em que verdade e mentira deixaram de ser opostas. Aliás, nem lutam uma contra a outra. Não faz qualquer diferença. Só conta o efeito imediato, amanhã logo se vê. Mas a mentira é insidiosa e fura a verdade como a água fura a pedra e deixa um buraco. É por isso que é possível ler neste livro, de várias formas, a frase do sr. Cardoso, dono do restaurante Comilão, “o Pedro diz sempre a verdade” (pág. 84), omitindo a lista de promessas falsas que Passos Coelho fez para ganhar as eleições, a começar pela garantia de que nunca iria cortar salários porque isso era “um disparate”.
A autora, aliás, situa-se bem na introdução: a biografia “não tem a pretensão de ser um retrato fiel do que foi a vida deste homem nem do que é hoje a base do seu pensamento. Essa história só ele a poderá contar” (pág. 9).
Mas, enquanto esperamos por esse dia, é preciso admitir o efeito eleitoral do livro, escrito na sua forma simplista, redundante, apaixonada, “possidónia”.
Passo a citar frases que podem ser lidas com distanciamento, como propaganda mal feita, ou, pelo contrário, podem entrar, pelo sentimentalismo e persuasão, numa grande parte do eleitorado, objectivo último desta biografia.
Sobre a mãe de Passos Coelho, que sempre quis ter um filho “loirinho de olhos azuis”:
 “Bia acusa a passagem do tempo e, apesar de ser um ano mais nova do que António [pai de Pedro, médico], ‘a idade pesou-lhe de outra maneira’. Ainda assim, não deixa de ter energia para se martirizar com o que sabe dizer-se, todos os dias, nos jornais e na televisão, sobre o seu filho mais novo. Apesar de se isolar, como que a esconder-se do tempo, acompanha diariamente o que se diz sobre Pedro e, como qualquer mãe que vê ser atacado o filho, vive numa angústia imensa. Uma das suas maiores alegrias seria ver o filho longe da pressão que o caminho que escolheu seguir lhe impõe. Acaso o filho se afastasse da política, Bia não iria ficar triste. Pelo contrário!” (pág. 35).
Sobre a juventude em Vila Real, na JSD:
“Quer fosse pela tenra idade ou pela clareza das ideias, conseguia passar as suas mensagens. Pedro, não tendo essa consciência, acredita que isso se deveria ao facto de se munir sempre de dois grandes aliados: a verdade e a convicção. ‘Nunca usei a minha capacidade de intervenção para atingir um objetivo preciso de uma forma artificial que não tivesse que ver com a convicção que tinha quanto ao julgamento que fazia do que pensava do que defendia. Sempre afirmei aquilo em que acreditava’” (pág. 52).
Sobre o talento “esplendoroso” de Pedro Passos Coelho para a escrita:
“‘O Pedro escrevia e escreve esplendorosamente bem, melhor do que qualquer um de nós. Era normal que, para além de tudo o resto, na divisão de tarefas, lhe fosse dada a de elaboração de textos’. Recorda Luís Monteiro” (pág. 68).
É  na parte dos sentimentos íntimos e da história familiar que o livro tem mais contradições. Para não usar outras palavras que todos entendem sem demonstração gratuita de conhecimento: hipocrisia ou cinismo.
“Mas esconder o que sente, mesmo não sendo um ato racional, não pode ser visto como uma desonestidade? Perante esta resposta, Pedro vira o tabuleiro. Usar a informação sobre factos que aconteceram na sua vida, que nada têm a ver com a política, com a tomada de decisão ou com o exercício da sua função, isso sim seria incorreto.
‘Não gosto de dar a ideia de poder estar a manipular ou a utilizar o sentimento das pessoas em favor de um determinado objectivo.’
Esta não é a postura mais comum, existe essa consciência. O mais fácil era deixar que se fizesse uso da sua história. E também seria o mais lógico. Não só porque o que vivemos é muito importante para a construção do que somos, mas também porque o facto de não demonstrarmos o que sentimos, fruto do que vivemos, pode ser interpretado como uma ausência de sentimento. Se não contarmos nós a nossa verdade, alguém contará a história por nós. Corremos o risco de que não seja a versão verdadeira.”
Mais adiante, Passos explica-se ainda melhor:
“Acho que existe um espaço próprio para a intimidade. Devemos distinguir aquilo que somos da nossa relação pessoal, da nossa intimidade, na nossa reserva, daquilo que é o nosso desempenho público. São coisas distintas” (pág. 120).
Distintas? Pedro Tadeu, no Diário de Notícias de 12 de Maio mostrava a sua surpresa e a da generalidade dos jornalistas por terem sido enganados. Tinha-se pedido reserva noticiosa sobre o cancro de Laura, a mulher de Passos Coelho. “Mas eis que num livro de propaganda política, de elogio à personalidade de Pedro Passos Coelho, a privacidade solicitada deixa de o ser e o cancro de Laura Ferreira é servido ao sentimentalismo das massas.”
E é assim que Laura surge a confessar como está apaixonada por Pedro porque ainda sente “borboletas na barriga” quando ele lhe telefona de surpresa para jantarem fora. E ficamos a saber que tipo de cancro lhe apareceu na perna, da prótese no joelho, das sessões de quimioterapia que continuam, do cancro que “atira o ânimo para uma gruta escura”. Do medo de morrer, misturado com o marido em acção:
“Laura, que sempre foi o porto seguro, o abrigo onde Pedro encontrou o conforto para ser ele próprio, é agora quem carece de força anímica.
A doença obrigou a uma total alteração de rotina do casal. Os que antes estavam estabelecidos como ritmos de um dia-a-dia normal, deixaram de existir. Pedro Passos Coelho, primeiro-ministro de Portugal, tenta agora gerir os dias entre a agenda de Estado e as obrigações de marido e de pai. Conta com a ajuda da família, sobretudo da filha e da irmã de Laura, mas na maior parte das vezes não dispensa o papel de pilar da família. Agora, é Pedro quem tem de ser o porto seguro. ‘Eu tenho medo de deixar as minhas filhas, a minha família, o meu marido. Tenho muito medo de morrer. O Pedro consegue tranquilizar-me e dar-me uma força’” (pág. 145).
Mais tarde, Passos Coelho, o discípulo do falecido António Borges, que defendia uma sociedade com uma elite de financeiros e empreendedores apoiada numa extensa mão-de-obra barata, aparece como o exemplo mais belo e genuíno da classe média, numa casa “nos arrabaldes”, aberta a petiscos e fados de fim-de-semana:
“Um apartamento espaçoso onde Pedro e Laura conseguem acolher todos os que amam e fazem questão de manter por perto no dia-a-dia. Uma casa decorada sem a tirania da estética ou das novidades estilísticas, onde cabem pedaços da história dos dois, das filhas de um, de outro e da de ambos. E ainda há espaço para Peluche e Olívia, as cadelas da família que completam, com o seu entusiasmo sonoro, o quadro mais genuíno da arte de bem receber. Ali, nada é pretensioso nem preparado. A simplicidade da receção é tão autêntica como a singeleza do espaço, onde o que se sente mais é vida. Ali vivem pessoas de carne e osso, pessoas como nós. Foi fácil sentir-me entre amigos” (pág. 179).
Linguagem onde ecoam maneiras de escrever antigas, as de um “acrisolado amor à Pátria”, algures entre as descrições oficiais de 1940 da “Aldeia Mais Portuguesa de Portugal” — onde as “casas são de granito em grandes silhares e perpianhos” e “o coveiro de Monsanto, primoroso tocador de flauta, é uma das pessoas mais alegres da aldeia” — e as aventuras de Anita (agora Martine) com o seu cachorrinho-salsicha, o Pantufa.
É num prédio de Massamá que habita um homem, um primeiro-ministro que faz com as próprias mãos os papos-de-anjo no Natal e estende a roupa e guarda sempre os domingos para o almoço de família. É um governante doméstico.
E que vive com “desconcertante desapego ao poder” para a desconcertante conclusão do livro (pág. 234):
“É exímio na protecção da sua vida privada e não levanta o véu, nem quando a vê ser agredida por inverdades. Não reage às falácias que se constroem sobre o que é, como vive ou que hábitos possui. Tem o conforto de saber que só há um Pedro, e é o mesmo antes e depois de ser primeiro-ministro. Esta manutenção de um ‘eu’ privado, que nem sempre foi propósito ou estratégia de outros primeiros-ministros, é para Pedro Passos Coelho condição incontornável. É aquela que lhe assegura que a sua identidade não se esgota no ser político e lhe dá espaço para que se possa entregar, mais genuinamente, aos outros papéis, não menos importantes: de pai, marido, filho, irmão, homem.”
Esta figura opaca que mistura família e política negando fazê-lo acaba de lançar novas bases populares para a conquista das próximas eleições. Para a manutenção no poder. Ingénua, mal feita, a biografia quer construir um novo mito português.

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