A
União Europeia (UE) pode estar perto de assinar um acordo comercial de longo
alcance com os Estados Unidos, cuja sigla TTIP foi extraída da sua designação em
inglês (Transatlantic Trade and Investiment Partnership) e que em português
significa “Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento”.
O
que se sabe neste momento sobre esta “parceria” é que tem sido negociada
secretamente ao nível da UE e sem que os parlamentos nacionais sejam
consultados. Tamanho secretismo deixa muito a desejar sobre as reais intenções
dos negociadores para além de constituir mais um significativo exemplo da forma
como é tratada a democracia na Europa, que permitirá, neste caso, a imposição de
um acordo a cada país, da forma mais absoluta.
Mais
uma vez, recorremos a um texto de uma personalidade insuspeita de qualquer
radicalismo, Joseph Stiglitz, Prémio Nobel da Economia (*) que nos elucida da
forma como funcionam as tais “parcerias”onde os donos da Europa nos querem
meter. Apesar de longo o texto é muito
esclarecedor.
Os
Estados Unidos e o mundo estão envolvidos num grande debate sobre novos acordos
comerciais. Estes pactos costumavam ser apelidados de “acordos de
livre-comércio”; na verdade eram acordos comerciais geridos, adaptados aos
interesses das grandes empresas, principalmente nos EUA e na União Europeia.
Hoje, estes acordos são mais frequentemente chamados “parcerias”, como na
Parceria Trans-Pacífica (PTP). Mas estas não são parcerias entre iguais: os EUA
impõem efetivamente as condições. Felizmente os “parceiros” da América estão a
tornar-se cada vez mais resistentes.
Não
é difícil ver porquê. Estes acordos vão muito além do comércio, regulando
também o investimento e a propriedade intelectual, impondo alterações
fundamentais nos modelos jurídicos, judiciários e regulamentares, sem
contribuições ou responsabilização por parte de instituições democráticas.
A
parte talvez mais injusta, e mais desonesta, de tais acordos diz respeito à
proteção dos investidores. Naturalmente, os investidores têm de ser protegidos
contra a apropriação das suas propriedades por governos desonestos. Mas não é
para isto que são tomadas estas provisões. Houve pouquíssimas expropriações em
décadas recentes, e os investidores que queiram proteger-se podem comprar
seguros da Agência Multilateral de Garantia do Investimento, uma filial do
Banco Mundial, e os EUA e outros governos oferecem garantias similares. Não
obstante, os EUA exigem estas provisões na PTP, mesmo quando muitos dos seus
“parceiros” têm proteções de propriedade e sistemas judiciários tão bons quanto
os seus.
O
verdadeiro propósito destas provisões é entravar regulamentos de saúde,
ambientais, de segurança, e mesmo financeiros, destinados à proteção da
economia e dos cidadãos americanos. As empresas poderão processar governos
exigindo uma reparação plena em função de qualquer redução nos seus lucros
futuros esperados decorrente de alterações regulamentares.
Esta
não é apenas uma possibilidade teórica. A Philip Morris está a processar o
Uruguai e a Austrália por estes exigirem rotulagem de advertência nos cigarros.
Reconhecidamente, ambos os países foram um pouco mais longe do que os EUA,
tornando obrigatória a inclusão de imagens chocantes que mostrem as
consequências do consumo de cigarros.
A
rotulagem está a funcionar. Está a desencorajar o tabagismo. Por isso agora a
Philip Morris exige ser compensada por lucros perdidos.
No
futuro, se descobrirmos que qualquer outro produto causa problemas de saúde
(pensem no amianto), em vez de enfrentar processos pelos custos impostos sobre
nós, o fabricante poderia processar os governos que o impediram de matar mais
pessoas. A mesma coisa poderia acontecer se os nossos governos impusessem
regulamentos mais rigorosos para nos proteger do impacto das emissões de gases
que contribuem para o efeito de estufa.
Quando
presidi ao Conselho de Assuntos Económicos do Presidente Bill Clinton, os
ambientalistas tentaram promulgar uma provisão similar conhecida por “exigência
regulamentar” [uma exigência que obriga a compensação em caso de regulamentação
governamental]. Sabiam que assim que fossem aprovados, os regulamentos seriam
suspensos, simplesmente porque o governo não poderia pagar a compensação.
Felizmente, fomos bem sucedidos no combata à iniciativa, tanto nos tribunais
como no Congresso dos EUA.
Mas,
agora, os mesmos grupos estão a tentar rodear os processos democráticos,
inserindo essas provisões em legislação comercial, cujo conteúdo está a ser
mantido, em grande parte, em segredo do público (mas não das grandes empresas
que estão a tentar impô-los). É apenas a partir de fugas, e conversas com
responsáveis governamentais que parecem mais comprometidos com o processo
democrático, que sabemos o que está a acontecer.
Um
poder judiciário público imparcial, com padrões legais construídos durante
décadas, baseado em princípios de transparência, de precedência, e da
oportunidade para recorrer de decisões desfavoráveis é fundamental para o
sistema de governo americano. Tudo isto está a ser posto de parte, já que os
novos acordos exigem arbitragem privada, não-transparente, e muito cara. Além
disso, este acordo é frequentemente repleto de conflitos de interesse; por
exemplo, os árbitros podem ser “juízes” num caso e defensores num caso
relacionado com o primeiro.
Os
procedimentos são tão dispendiosos que o Uruguai teve de recorrer a Michael
Bloomberg e a outros americanos abastados e comprometidos com a saúde para se
defender da Philip Morris. E, embora as grandes empresas possam instaurar
processos, outros não podem fazê-lo. Se existir uma violação de outros
compromissos, por exemplo laborais ou de normas ambientais, os cidadãos, os
sindicatos e os grupos da sociedade civil não dispõem de qualquer recurso.
Se
alguma vez existiu um mecanismo unilateral de resolução de disputas que viola
princípios básicos, este é um deles. Foi por isso que me juntei a destacados
peritos jurídicos dos EUA, incluindo de Harvard, Yale, e Berkeley, na escrita
de uma carta ao Presidente Barack Obama explicando quão nocivos são estes
acordos para o nosso sistema de justiça.
Os
apoiantes americanos de tais acordos salientam que até agora os EUA foram
processados poucas vezes, e que ainda não perderam um único caso. As grandes
empresas, contudo, estão a começar a aprender estes acordos em seu proveito.
E
as dispendiosas sociedades de advogados nos EUA, Europa e Japão muito
provavelmente superarão os mal-remunerados advogados governamentais que tentem
defender o interesse público. Pior ainda, as grandes empresas dos países
avançados podem criar filiais em países-membros através das quais investem
novamente nas sedes, e seguidamente processar, dando-lhes um novo canal para
bloquear regulamentação.
Se
houvesse uma necessidade para uma melhor proteção da propriedade, e se este
mecanismo de resolução de disputas privado e dispendioso fosse superior a um
sistema judicial público, deveríamos estar a mudar a lei não apenas para
prósperas companhias estrangeiras, mas também os nossos próprios cidadãos e
pequenas empresas. Mas não tem havido indícios de que seja este o caso.
As
normas e regulamentos determinam o tipo de economia e de sociedade em que as
pessoas vivem. Afetam o poder de negociação relativo, com implicações
importantes sobre a desigualdade, um problema crescente em todo o mundo. A
questão é se devemos permitir que as abastadas empresas usem provisões ocultas,
em alegados acordos comerciais, para impor como viveremos no século XXI. Espero
que os cidadãos nos EUA, na Europa, e no Pacífico respondam com um retumbante
não.
(*) “A
secreta tomada do poder pelas multinacionais”, Expresso Economia
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