A
criação de uma base de dados com a identificação de pessoas condenadas por
crimes sexuais contra crianças, num ano de eleições, tem todo o aspecto de uma
medida populista de caça ao voto.
Estamos
na presença de um tema muito sensível para a opinião pública porque o abuso
sexual de menores é, na verdade, um crime hediondo que repugna a toda a
sociedade e, por isso mesmo, passível de manipulação demagógica por parte do
poder.
Um
grande número de especialistas nesta matéria contesta as medidas do Governo porque
podem dar origem a consequências perversas e indesejáveis, sem conseguirem
combater o crime.
O
texto que se segue, assinado por José Vitor Malheiros, foi transcrito do
Público de hoje e constitui, no mínimo, uma chamada de atenção para a
problemática em causa.
Não
existe nenhuma razão para que as autoridades judiciais portuguesas não colijam
uma base de dados de pessoas condenadas por crimes sexuais contra menores.
Bases de dados desse tipo podem ser muito úteis, nomeadamente em estudos de
criminologia.
Foi,
aliás, com surpresa que li as primeiras notícias sobre a criação desta base de
dados, pois supunha que elas existissem em entidades como o Ministério Público,
com dados sobre todos os indivíduos alguma vez condenados pelos tribunais
portugueses e, caso existissem, fazer uma “lista de pedófilos” resumir-se-ia a
fazer uma simples pesquisa.
Mas
uma coisa é as autoridades judiciais possuírem um registo deste tipo e outra,
radicalmente diferente, é disponibilizarem esses dados a qualquer cidadão. É
verdade que o “registo de identificação criminal de condenados por crimes
contra a autodeterminação sexual e a liberdade sexual de menores”, cuja criação
foi aprovada na semana passada em Conselho de Ministros, não permite a consulta
indiscriminada por qualquer um, mas a definição das entidades e pessoas que
podem solicitar a sua consulta (não apenas as autoridades policiais e judiciárias,
os serviços de reinserção social e as comissões de protecção de crianças e
jovens mas também “pais com suspeitas”) traduz-se, na prática, num acesso quase
universal.
Isto
é tanto mais assim quanto a justiça portuguesa continua a demonstrar diariamente
nas páginas dos jornais a sua incapacidade para manter em segredo informação
sensível relativa a investigações em curso. São por isso de aceitar apostas
para o tempo que irá mediar entre a criação da lista e a sua publicação na
Internet – ou a publicação de excertos seleccionados, reais ou fabricados.
A
criação deste registo e a possibilidade da sua utilização ao serviço de “pais
com suspeitas” ou de potenciais empregadores constitui, na prática, um convite
ao linchamento popular. Esse linchamento pode não tomar a forma extrema de um
atentado contra a vida do pedófilo condenado, mas será, no mínimo, uma
condenação ao ostracismo. É duvidoso que uma pessoa identificada como fazendo
parte desta lista, mesmo depois de ter cumprido a pena e mesmo que não haja
qualquer suspeita sobre o seu comportamento, possa encontrar e manter um
emprego ou, simplesmente, manter relações sociais de algum tipo com alguém. Do
que se trata – no melhor dos casos – é de uma pena de degredo, não
decretada por nenhum tribunal, que se vem somar à condenação anterior. No pior
dos casos, trata-se da incitação à prática de crimes de agressão por parte de
pais legitimamente preocupados mas irracionalmente exaltados.
A
questão é que, sendo possível a consulta desta lista – ou a certificação,
por parte das autoridades, de que alguém dela faz parte ou dela não
consta –, muitos pais se sentirão impelidos a fazer a consulta em relação
aos funcionários e professores da escola dos filhos, ao instrutor de natação, à
fisioterapeuta, ao merceeiro simpático, ao enfermeiro solícito, apenas para não
pensarem que poderão estar a negligenciar a protecção dos seus filhos.
O
que se segue a estas consultas, quando se encontre de facto um ex-condenado
nalgum lugar, é a criação de um clima de medo e de ódio, de acusações e de
recriminações, que não pode deixar de causar profundos danos ao tecido social.
Isto
para não falar dos casos de falsas identificações que sempre surgem nestes
casos e, inversamente, da falsa sensação de segurança que pode ser criada ao
constatar que alguém, afinal, não consta da lista.
Uma
pergunta que se deve fazer é “porquê uma lista de pedófilos e não de outros
criminosos?”. Será a pedofilia o crime mais frequente em Portugal? Será o mais
preocupante? Por que não uma lista de infanticidas? De homicidas? De abusadores
não sexuais de crianças? De pessoas que matam os cônjuges? De violadores? A
resposta só pode ser uma: a lista de pedófilos surgiu porque o abuso sexual de
crianças é um dos crimes mais horrendos que se pode imaginar e é por isso
difícil contestar uma medida apresentada como preventiva desse crime. Trata-se
de um gesto de aparente “transparência” e “empowerment
dos
cidadãos”, mas ele apenas visa espalhar o medo e dar livre curso aos mais
baixos instintos dos cidadãos, como forma desesperada de conquistar os seus
votos. E trata-se, também, de ir impondo a gradual transferência para a esfera
privada, para a “comunidade”, de uma responsabilidade nuclear do Estado como é
a segurança. A verdade é que a medida não previne o abuso sexual de crianças
porque a esmagadora maioria destes abusos são praticados por familiares ou
pessoas próximas das crianças – não pelo estranho que deambula pelas ruas.
Se a ministra da Justiça,
Paula Teixeira da Cruz, estivesse realmente interessada em reduzir os crimes
contra as crianças, seria infinitamente mais produtivo que começasse por ouvir
os especialistas que, esmagadoramente, estão contra este registo e o consideram
inútil ou nocivo e que dotasse as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens
de reais meios financeiros e humanos.
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